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A Fragilidade do Modelo de Rastreabilidade da Carne Bovina Brasileira
                                 O 
atual impasse das exportações da carne bovina brasileira para a União Européia 
(UE) tem mostrado a fragilidade do sistema implantado no país para certificar a 
carne brasileira. O descredenciamento de um grande número de propriedades, que 
antes eram capacitadas a vender para o bloco europeu, é o maior 
indicador. 
             
Rastreabilidade para os europeus é coisa séria, certificação também. O Brasil e 
os produtores, desde o início da implantação do Sistema Brasileiro de 
Identificação e Certificação de Origem Bovina e Bubalina (SISBOV), em 2002, têm 
dificuldade de compreender esta questão. 
             Para 
avaliar os entraves que têm sido colocados ao sistema brasileiro de 
rastreabilidade utilizaram-se, como principais fontes, sites específicos, textos 
sobre a qualidade agroalimentar e processos de certificação. Procurou-se fazer 
uma reflexão sobre o problema e identificar os pontos fracos do sistema de 
gestão da rastreabilidade SISBOV. 
             
Tomando como referencial teórico a Economia da Qualidade Agroalimentar da Escola 
Francesa, tem-se a convenção como mecanismo de desenvolvimento desses 
instrumentos de controle de qualidade, que busca estabelecer, não uma qualidade 
padronizada, mas estabelecida pela convenção de atores sociais locais, ou 
regionais1. 
             A 
qualidade agroalimentar deve ser repensada, pois é um conceito que se ampliou 
com a incorporação de inovações tecnológicas na agricultura e o comércio global. 
Hoje não se refere somente ao produto, mas leva em consideração as exigências do 
cliente ou consumidor e a coordenação que deve ser realizada ao longo de toda a 
cadeia produtiva2. 
             Para 
entender a crise nas exportações de carne à União Européia (UE) é preciso recuar 
um pouco no tempo e voltar à criação do SISBOV. 
             O 
Brasil e demais exportadores eram pressionados pela UE a implantar um sistema de 
rastreabilidade para que pudessem continuar a vender carne para lá. A pressão 
existia há um bom tempo, foi dado um prazo para sua implantação mas a discussão 
sobre o tema aqui no Brasil aconteceu em cima da hora, sem ampla participação 
dos pecuaristas, que apresentaram muita resistência, sempre preocupados com o 
custo e o retorno de seus investimentos. 
             Essa 
preocupação, de certa forma, tinha sua razão de ser, pois logo após a 
implantação do sistema, os frigoríficos, ao invés de premiar os produtores 
certificados, optaram pelo deságio da carne que não fosse certificada. Havia e 
há uma falta de percepção da importância de se rastrear a carne, no país que tem 
o maior rebanho mundial. 
             Como 
as discussões ocorridas não geraram um consenso sobre como deveria ser feita a 
rastreabilidade, resultou um sistema inadequado e sem estrutura para ser posto 
em prática de imediato. Embora o Brasil não apresente a doença da "vaca louca", 
optou-se por fazer rastreabilidade por animal, apesar de não haver condições 
para se colocar na prática, pois nem certificadoras credenciadas, aptas a 
realizar esta tarefa, havia ainda. 
             Além 
disso, a proposta de certificação não se mostrou confiável, pois as 
certificadoras que se credenciaram junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária 
e Abastecimento (MAPA) foram formadas para esse fim e muitas tiveram origem em 
associações de produtores, o que em si não dá credibilidade ao sistema, pois não 
mostra isenção para avaliação. 
             Ainda 
em 2002 foram iniciadas inspeções freqüentes nas fazendas e frigoríficos, que 
sempre encontravam problemas no controle de identificação e movimentação de 
animais. 
             Com o 
surgimento da febre aftosa no país, em 2005, houve a proibição européia de 
importação dos Estados de Mato Grosso do Sul, São Paulo e Paraná e nos anos 
seguintes aumentou a pressão do Comitê Europeu. As comissões enviadas observaram 
a ausência de controles do sistema: falta de brincos nos animais, de 
rastreamento, contrabando de animais do Paraguai, movimentação de animais entre 
zonas livres e não livres de aftosa, trabalho escravo ou semi-escravo, 
desmatamento, etc. 
             A 
necessidade de mudanças levou a alterações, em 2006, a começar pelo nome que 
passou a ser Serviço Brasileiro de Rastreabilidade da Cadeia Produtiva de 
Bovinos e Bubalinos, mantendo a sigla SISBOV. Dois aspectos foram relevantes: a 
adesão voluntária e a criação do conceito de "estabelecimento rural aprovado no 
SISBOV", com a obrigação de todos os animais dos estabelecimentos aprovados 
serem rastreados e identificados individualmente, sendo permitida a opção pelo 
tipo de identificação (Instrução Normativa 
n.17/2006)3. 
             Em 
2007, houve uma campanha liderada pela Irlanda contra o consumo humano da carne 
brasileira, realizada principalmente devido à preocupação de alguns países com a 
concorrência da carne brasileira. 
             A UE, 
em 2008, restringiu a importação da carne brasileira devido a falhas no 
"registro das explorações, na identificação dos animais e ao controle das 
movimentações, bem como a inobservância dos seus compromissos anteriores no 
sentido de adotar as necessárias medidas corretivas"4 no 
cadastramento das fazendas e foi feita uma lista de fazendas habilitadas a 
exportar para lá. Minas Gerais foi o primeiro estado contemplado na lista, 
devido à gestão pública de controle da rastreabilidade. 
             Após 
está crise, o MAPA formalizou, através da Instrução Normativa n. 24, de 30 de 
abril de 2008, que os estados também serão responsáveis pelas auditorias das 
propriedades que exportam carne bovina in natura para a 
UE5. 
             
Lembrando que o objetivo do SISBOV é "registrar e identificar o rebanho 
bovino e bubalino do território nacional possibilitando o rastreamento do animal 
desde o nascimento até o abate, disponibilizando relatórios de apoio a tomada de 
decisão quanto a qualidade do rebanho nacional e importado"6, a 
reflexão a ser feita é sobre este sistema que não funciona e está desacreditado 
devido, principalmente, às fraudes que o sistema permite, o que faz transparecer 
as falhas de seu funcionamento. 
             Na 
definição de funções, o MAPA é responsável pelo sistema, é a entidade 
normalizadora e responsável pela Base Nacional de Dados (BND), onde estão todas 
as informações das propriedades. Abaixo dele estão as Organizações 
Certificadoras (OCs) que são empresas regionais que foram criadas para esta 
função, no atendimento à criação do SISBOV. 
             A 
grande questão a se colocar diz respeito ao modelo de gestão do SISBOV. As OCs 
na verdade não são órgãos credenciados pelo Instituto Nacional de Metrologia, 
Normalização e Qualidade Industrial (INMETRO), que é o órgão acreditador 
brasileiro, reconhecido pelo Internacional Acreditation Fórum Internacional 
(IAF) ao qual é associado, e sim pelo MAPA. O IAF emite certificados aceitos em 
todo mundo, devido a acordos mútuos de reconhecimento, estabelecidos no 
Multilateral Recognition Arragement7, o que dá credibilidade às 
certificadoras que credenciadas. 
             O 
modelo implantado deveria ser o de certificação de terceira parte, tendo por 
base a ISO 65, onde a entidade certificadora não tem vínculo com os interessados 
e, portanto, teria maior isenção nas auditorias. A terceira parte seria um 
organismo certificador credenciado no INMETRO que atuaria com independência, 
tanto do MAPA como dos produtores. Ao MAPA caberia a normalização e 
credenciamento das certificadoras, assim como a fiscalização do processo, 
cabendo a ele a avaliação dos procedimentos relativos a não conformidades, 
previstas nas normas, e as punições. 
             O 
primeiro passo seria descredenciar as certificadoras atuais, que não têm 
condições de executar a certificação e propor um sistema viável que possa ser 
executado de forma a dar credibilidade ao sistema. 
             Além 
disso será necessário convencer os pecuaristas que o melhor a fazer é investir 
na rastreabilidade da carne bovina e seguir todos os processos para obter a 
certificação para não correr riscos de perder mercados, pois apesar de a 
preocupação maior ser com a UE, deve-se ter em conta que há outros países que 
tomam como base as posições do bloco europeu para decidir suas compras de carne 
no mercado internacional. E não é só o mercado europeu em si que está em jogo, 
pois se poderia atender a outros, mas o mercado europeu é o que paga melhor 
porque pois compra cortes nobres. 
             
Chegar a um número de fazendas adequadas a exportar não é o maior problema, mas 
sim dar credibilidade ao nosso sistema e para isso não basta demonstrar que 
determinado número de propriedades está apta a exportar, mas que todas as 
fazendas habilitadas e relacionadas estão sendo inspecionadas e controladas 
seriamente, cumprindo as condições especificadas 
             Há 
ainda muito mais com que se preocupar, além da sanidade animal. Os aspectos 
ambientais (expansão da pecuária em áreas desmatadas na Amazônia) e sociais 
(utilização do trabalho escravo) são preocupação cada vez maior dos consumidores 
europeus e devem ser introduzidas como parte das exigências deste mercado, 
fazendo parte das barreiras não-tarifárias. 
             
Apesar de o europeu necessitar da carne brasileira, o interesse brasileiro em 
relação ao valor monetário de suas vendas para o bloco europeu é grande já que 
as exportações brasileiras para Europa representam 32% da receita total; em 
volume 15,2% do total exportado e 3% do total do abate brasileiro8. 
Dentro do próprio bloco há quem se beneficie com o embargo à carne brasileira. É 
o caso da Irlanda que se sente prejudicada com a expansão das vendas de carne 
brasileira e vinha fazendo pressões para seu embargo. 
             Este 
é um primeiro passo para que a carne brasileira possa entrar no sistema 
GlobalGap o qual exige garantia de rastreabilidade ao longo de toda a cadeia até 
chegar ao consumidor. Além disso, a qualidade será cada vez mais uma exigência 
do mercado interno, porque o consumidor, cada vez mais informado, se torna mais 
exigente. Nesse sentido, a certificação precisa de credibilidade e nada melhor 
do que contar com certificadoras credenciadas junto ao 
INMETRO. 
 _________________  2VALCESCHINI, E.; NICOLAS, F. La 
dynamique économique de la qualité agro-alimentaire. In: AGRO-ALIMENTAIRE: une 
économie de la qualité. Paris: INRA; Economica, 1995. p. 
15-37. 
 3SERVIÇO BRASILEIRO DE 
RASTREABILIDADE DA CADEIA PRODUTIVA DE BOVINOS E BUBALINOS - SISBOV. Disponível 
em: <http://www.agricultura.gov.br>. Acesso em: 4 jun. 
2008. 
 4CAVALCANTI, M. R. O boi, o 
brinco e a União Européia. Disponível em: 
<http://www.beefpoint.com.br/?noticiaID=42322&actA=7&areaID=15&secaoID=123>. 
Acesso em: 4 jun. 2008. 
 5ESTADOS poderão auditar 
propriedades ERAs. Disponível em: 
<http://www.beefpoint.com.br/?actA=9&erroN= 
1&areaID=72&referenciaURL=noticiaID=44825||actA=7||areaID=15||secaoID=155> 
. Acesso em: 4 jun. 2008. 
 6Op. cit. nota 
3. 
 7HOLMO, M. R. Certificação é o 
passaporte para mercados exigentes. In: ANUÁRIO DA AGRICULTURA BRASILEIRA – 
AGRIANUAL 2007. São Paulo: Agra FNP Pesquisas Ltda., 2007. p. 
43-45. 
 8DE ZEN, S. Os vários 
interessados na carne brasileira. Disponível em: 
<http://www.cepea.esalq.usp.br/ pdf/Cepea_ExportCarneBOI.pdf>. Acesso em: 
4 jun. 2008. 
 Palavras-chave: carne bovina, 
rastreabilidade, SISBOV, exportação. 
1FRAGATA, A. Elementos para 
elaboração social e técnica da qualidade dos produtos agrícolas tradicionais. 
In: CONGRESSO DE ESTUDOS RURAIS, 1., 2001, Portugal. Anais eletrônicos... 
Disponível em: <http://home. utad.pt/~des/cer/CER/CONTEUDO/05C.HTM>. 
Acesso em: 4 jun. 2008. 
Data de Publicação: 17/06/2008
                Autor(es): 
                Rosana de Oliveira Pithan e Silva (rosana.pithan@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Geni Satiko Sato (sato@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor              

                    
                        