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Biodiesel: veto(r) de inclusão social?
                     "Ao se examinar as 
perspectivas da revolução energética do século XXI devemos privilegiar um 
tratamento simétrico das dimensões social e ambientais, posto que, 
simultaneamente com a crise ambiental, estamos  enfrentando uma gravíssima crise 
social, representada pelo déficit crônico e crescente de oportunidades de 
trabalho decente..." (SACHS, 2007)1             Em 
1972, a Conferência das Nações Unidas, realizada em Estocolmo, marcou o início 
de um processo de conscientização dos problemas ambientais em dimensão 
planetária, ainda que restrito a círculos acadêmicos e entidades não 
governamentais e com foco mais conservacionista do que sócioambiental. Em meados 
da década de 1980, as imagens de satélite mostrando o buraco na camada de ozônio 
sobre a Antártida, divulgadas pelo Relatório da Comissão Mundial do Meio 
Ambiente (Relatório Brundtland), confirmaram os efeitos nocivos sobre o meio 
ambiente decorrentes de ações antrópicas (FELDMANN, 2003)2. "As 
desigualdades observadas em todo o planeta quanto ao progresso econômico, 
justiça social e qualidade ambiental mobilizaram a atenção de líderes mundiais 
no sentido de questionar o modelo de desenvolvimento estabelecido. (...) 
a partir do - Relatório Brundtland - propagou-se o conceito de 
desenvolvimento sustentável" (CARMO; SALLES; COMITRE, 
1995)3 o qual ganha peso, em 1992, a partir da Conferência do Rio de 
Janeiro, onde duas convenções foram assinadas pela maioria dos países presentes: 
a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica e a Convenção 
Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, que culminou no Protocolo de 
Quioto. 
 "É possível afirmar que o século 21 se 
iniciou com a realização da Rio-92 (...) sob enfoque legal, portanto, criam-se 
dois marcos regulatórios globais que, em tese, indicariam os caminhos para se 
enfrentar os dois maiores problemas da humanidade: a degradação de ecossistemas 
e o aquecimento da temperatura média da terra" (FELDMANN, 
2003)4. 
 A emergência de se mitigar os efeitos do 
aquecimento global pressiona que o desenvolvimento econômico, para ser 
sustentável, ocorra com menor dependência dos combustíveis fósseis (carvão, 
petróleo e gás natural) e incorpore mais uma função para a agricultura: a 
geração de energia. 
             Nesse 
início de século, a Portaria n. 720, de 30 de outubro de 2002, instituiu o 
Programa Brasileiro de Biodiesel (Pró-biodiesel) (Brasil, 2007)5, 
demonstrando o esforço do governo federal em empreender-se rumo ao 
desenvolvimento sustentável, ou seja, balizando os aspectos econômicos, sociais 
e ambientais. É neste contexto que, em meados de 2003, o Programa Nacional de 
Produção e Uso de Biodiesel (PNPB, 2007)6 foi 
concebido. 
             O 
PNPB é um programa interministerial encarregado de estudos sobre a viabilidade 
de utilização de óleos vegetais para fins energéticos que visa, dentre outros 
objetivos, implantar um desenvolvimento sustentável promovendo a inclusão 
social. 
             Com 
quase três anos de PNBP, a soja continua sendo a matéria-prima de 55% do 
biodiesel produzido no Brasil, a mamona representa 20% e o restante é dividido 
entre outras oleaginosas como o nabo forrageiro e o dendê (OLIVEIRA, 
2007)7. A produção dessa oleaginosa tem sido expandida para a região 
do cerrado, em desrespeito à biodiversidade, cultivada em grandes áreas de 
monocultura, em estímulo às concentrações fundiária e de renda, e seu sistema 
produtivo é altamente mecanizado, o que restringe a inclusão social de pequenos 
agricultores. Souza (2004)8 avaliou o potencial de emprego de algumas 
oleaginosas e a ocupação da terra por família. Constatou que, para empregar uma 
família, a produção de soja utiliza 20 hectares de terra, enquanto essa mesma 
família ocuparia 16 hectares de amendoim (lavoura mecanizada). Babaçu e dendê 
precisam de 5ha/família e a mamona, de 2ha/família. Percebe-se, portanto, que a 
produção de biodiesel a partir da soja está em desacordo com o contexto no qual 
se criou o PNPB e tem dificultado sua convergência para a inclusão 
social. 
             
Explicitamente, o PNPB visa integrar os agricultores familiares ao fornecimento 
de matéria-prima para a produção de biodiesel contribuindo para a equidade 
social a partir da geração de sua renda. Para isso, foi criado o Selo 
Combustível Social, concedido pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) 
aos produtores de biodiesel que promovam a inclusão social e o desenvolvimento 
regional, por meio da geração de emprego para os agricultores enquadrados nos 
critérios do PRONAF. O selo social garante aos usineiros benefícios tributários, 
facilidade de acesso às melhores condições de financiamento e o direito a 
participar dos leilões de biodiesel, em troca do fornecimento de capacitação e 
assistência técnica aos agricultores familiares. No entanto, apesar desse 
estímulo, existem hoje 27 usinas (ANP, 2007)9 em operação das quais 
apenas 16 têm o selo social (MDA, 2007)10. Infere-se, portanto, que 
participação dos agricultores familiares no mercado de biodiesel está sub- 
aproveitada, o que é corroborado pelo fato de a aquisição do selo social não 
exigir que o usineiro adquira toda a matéria-prima da agricultura familiar. 
Segundo o MDA, "o produtor de biodiesel terá que adquirir da agricultura 
familiar pelo menos 50% das matérias-primas necessárias à sua produção 
provenientes do Nordeste e semi-árido. Nas Regiões Sudeste e Sul, este 
percentual mínimo é de 30% e na Região Norte e Centro-Oeste é de 
10%". 
             A 
restrição feita à participação da agricultura familiar no atual estágio 
produtivo de biodiesel fica mais evidente, com a frase de Ricardo Dorneles em 
entrevista à Revista FAPESP (OLIVEIRA, 2007)11, "A realidade do 
biodiesel produzido hoje no Brasil se dá basicamente com a soja, cuja oferta e 
preço seduzem os produtores, além do resíduo obter bom mercado... A soja leva 
vantagens pois o processo de produção de óleo é bem desenvolvido e totalmente 
dominado pela agroindústria". Ora, em que pese a importância da agricultura 
para a produção de energia carburante, o ingrediente básico para produzir 
biodiesel é um produto industrial. Os grãos oleaginosos são produzidos pela 
agricultura, mas, seu subproduto óleo é produzido nas indústrias. Portanto, 
usinas produtoras de biodiesel podem adquirir óleos vegetais de uma indústria 
processadora de grãos oleaginosos, importar a matéria-prima ou mesmo utilizar 
insumos alternativos, restringindo a participação da agricultura brasileira. As 
usinas sem selo, que estão em maioria, utilizam matérias-primas não provenientes 
da agricultura e revendem o biodiesel para as usinas que possuem o selo, as 
quais estão aptas a participar dos leilões. O sebo bovino, cujas cotações são 
cerca de 50% aquém do óleo de soja (que oferece as mais baixas cotações no 
mercado internacional), e os óleos residuais (cujo valor econômico é 
praticamente nulo) têm sido utilizados como matéria-prima, seja pela dificuldade 
dos usineiros em contatarem agricultores familiares, seja pelo menor custo 
destas matérias-primas. Ressalta-se que das 16 usinas que possuem o selo, 
somente duas (Granol e Brasil-ecodiesel) produziram mais de 90% do biodiesel 
brasileiro, no primeiro semestre de 2007, o que indica que a expansão do mercado 
desse biocombustível não implica que a participação dos agricultores familiares 
seja ascendente. Há, ainda, outro agravante: devido à atual tendência de alta 
nas cotações dos óleos vegetais, os percentuais exigidos pelo MDA têm propensão 
a serem interpretados enquanto "valor das aquisições de matéria-prima" em 
detrimento da "quantidade de aquisições de matéria-prima". A sutileza 
disso tudo é que a inclusão do biodiesel na matriz energética brasileira pode 
não necessariamente se reverter em aumento de renda para o setor agrícola, 
desfavorecendo, inclusive, o desenvolvimento regional, ora priorizado para a 
região do semi-árido brasileiro. 
             
Atente que "sebo bovino" e "óleos residuais" são matérias-primas não 
contempladas no PNPB, ou seja, não permitem a aquisição de Selo Social e, 
portanto, não garantem isenções tributárias ao usineiro. Daí, fica a questão: 
Até que ponto torna-se mais vantajoso privar-se da desoneração tributária (total 
ou parcial) por meio da utilização de matérias-primas mais 
baratas? 
             Para 
que o biodiesel possa ser um combustível sócio-ecológico, ou seja, que não 
prejudique o meio ambiente, e um vetor de inclusão social faz-se necessário 
desvincular o PNPB de oleaginosas cujas técnicas de cultivos e processamento são 
conhecidas e que têm cotações atreladas ao mercado internacional. Nesse sentido, 
destaca-se a importância das instituições públicas de pesquisa e o papel da 
extensão rural para fomentar tecnologias e o uso de espécies nativas que possam 
ser aproveitadas pela agroenergia. Especificamente, é prioritário 
fomentar: 
 b) diferir as linhas de financiamento 
ao agricultor, não de acordo com a matéria prima utilizada ou região 
proveniente, mas sim considerando o elo da cadeia no qual se enquadrem: energia 
ou alimentos;           c) implementar 
linhas de financiamento para custeio de oleaginosas cultivadas na 
"safrinha";  ______________________________________________________________ 
 Palavras-chave: biodiesel, biocombustível, 
agroenergia. 
1SACHS, I. A revolução 
energética do século XXI. In: Dossiê energia. Estudos Avançados, São 
Paulo, v. 21, n. 59, p. 1-382, 2007. 
2FELMANN, F. A parte que nos cabe: consumo sustentável?. In: 
TRIGUEIRO, A. (Coord.). Meio ambiente no século 21. Rio de 
Janeiro: Sextante, 2003. 
3CARMO, M. S.; SALLES, J. T. A. O; COMITRE, V. Agricultura 
sustentável e o desafio da produção de alimentos no limiar do terceiro 
milênio. Informações Econômicas, São Paulo, v. 25, n. 11, p. 25-36, nov. 
1995. 
4Op. cit. 
nota 2. 
5BRASIL. 
Ministério de Ciência e Tecnologia. Portaria. Disponível em: <www.mct.gov.br/leg/portarias>. 
Acesso em: 2007. 
6PROGRAMA NACIONAL DE PRODUÇÃO E USO DE BIODIESEL - PNPB. 
Disponível em: <www.biodiesel.gov.br>. Acesso em: 
2007. 
7OLIVEIRA, 
M. de. Biodiesel em ascensão. Pesquisa FAPESP, São Paulo, n. 134, p. 
63-67, abr. 2007. 
8SOUZA, A. S. (2004). Biodiesel e oleos vegetais como 
alternativa na geração de energia elétrica: o exemplo positivo de Rondônia. In: 
GREENPEACE. (Coord.). Dossiê positivo para o BRASIL. Disponível em: 
<http://www.greenpace.org.br>. 
9AGÊNCIA NACIONAL DO PETRÓLEO - 
ANP. Disponível em: <www.anp.gov.br>. 
Acesso em: 2007. 
10MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO –MDA. Disponível em: 
<www.mda.gov.br>. Acesso em: 
2007. 
11Op. cit. 
nota 7. 
Data de Publicação: 28/09/2007
Autor(es): Silene Maria de Freitas (silene.freitas@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor

                    
                        