Artigos
Sair dos trilhos: um autêntico rumo
                    
 Martin 
Wolf2             O 
estirado passo que a ruptura econômica e financeira global registra tem 
conduzido a reflexões aprofundadas em todos os segmentos da sociedade 
contemporânea. Aqueles posicionados no escalão mais cético das opiniões 
asseveram que a crise é 'um estado, um processo que se autoalimenta e assim se 
sustenta'3. Ainda que o pessimismo não seja critério científico de 
análise, como pontifica Sir Bertrand Russel4, tornou-se inegável que 
o desalento entre desempregados europeus/estadunidenses contribui imensamente no 
clima de mal-estar coetâneo.              A 
possibilidade de que no contexto atual esteja se vivenciando uma espécie de 
estancamento do processo civilizatório é um sentimento que se difunde por entre 
governantes e empresas. O desiderato de que a produção de riquezas (por meio do 
incremento da base de produção de bens e prestação de serviços) se traduz em 
mais bem--estar/felicidade deixou de ser irrefutável identidade. Em 2011, o 
ex-presidente francês sinalizou que já havia ultrapassado o momento de 
substituir o método de mensuração do Produto Interno Bruto (PIB), buscando novas 
maneiras de acoplar o 'sentido da vida' ao do desenvolvimento 
econômico.              No 
contexto das transnacionais, é possível recolher afirmativas como 
             Não 
poderia haver diagnóstico mais contundente de esgarçamento do decantado 
mecanismo de reprodução ampliada do capital6. Congênere diagnóstico é 
compartilhado pelas montadoras que, confiando no cenário de ser ecologicamente 
insustentável que cada família possua dois automóveis, entende ser preciso 
abandonar a produção de veículos para adentrar no ramo de serviços de 
mobilidade7, outro posicionamento que evidencia dilemas pelos quais 
atravessam os CEO’s das grandes líderes globais.              Em 
esforço individual de espelhamento desse conjunto de reflexões prospectivas 
frente ao complexo agroindustrial do café, que ilações são possíveis de se 
extrair? Considerando especialmente os encadeamentos técnico-produtivos 
pós-porteira, por quais trilhos evoluíram a reinvenção desse negócio? Concebe a 
vertente shumpeteriana do pensamento econômico o crescimento como um 
desdobramento das inovações. Porém, na indústria do café, depara-se com segmento 
tecnologicamente maduro, ou seja, sob esse prisma, tecnicamente condenado a uma 
trajetória de baixo crescimento8. Caso empiricamente tal hipótese se 
verifique, não se concentrariam nas empresas desse segmento os exemplos a serem 
estudados, procurando-se perceber em quais situações foi possível alinhar 
crescimento das vendas (e consequentemente do lucro) com padrões sustentáveis de 
consumo.              As 
experiências de êxito no negócio café situam-se na produção de inovações (de 
produto e processo) destinadas à prestação de serviços vinculados à bebida. 
Empresas como a illycaffè®, NESPRESSO®, Syngenta®, Café do Centro®, Café Bom 
Dia® e Starbucks® exemplificam trajetórias diversas que curiosamente se 
assemelham nessa capacidade que aqui é denominada de sair dos 
trilhos.              De um 
ponto de vista brasileiro, o mais icônico dos casos de reinvenção dos negócios 
em café foi o da illycaffè®. Em 1989, seu saudoso presidente Ernesto Illy 
percebeu que jamais conseguiria manter o elevadíssimo padrão de excelência da 
bebida sem um estreitamento das ligações com regiões/países produtores do grão, 
especialmente o Brasil, sinônimo de café com os mais destacados atributos para o 
preparo espresso. A estratégia de empresa constituiu-se na estruturação 
de conjunto de empresas com atribuições muito específicas: laboratório de prova 
de café, empresa trading, firma distribuidora do produto para clientes no 
território nacional e convênio com centro de pesquisas para treinamento e 
capacitação de técnicos no agronegócio café, conjuntamente com a organização de 
rol de fornecedores com reconhecido esmero no pós-colheita e concurso anual de 
qualidade de café para espresso. A esse arranjo de intervenções, mais 
recentemente, integraram-se os padrões de sustentabilidade da produção mediante 
a verificação de protocolos próprios ou daqueles já aceitos pelo mercado. Todo 
esse processo de articulação e construção de instituições permitiu à empresa não 
apenas manter trajetória de crescimento dentro da UE, como estruturar filial 
fora da Itália conquistando market-share em mercados não tradicionais 
para a empresa.              Outro 
caso de inegável êxito é o representado pela NESPRESSO®9. Ainda que 
mais tardiamente tendo adentrado no mercado brasileiro, em poucos anos de 
operação inverteu o sinal da balança comercial das transações envolvendo café 
torrado e moído (T&M). Atualmente, o Brasil é importador líquido de T&M, 
sendo que aproximadamente 80% desse saldo é gerado pelas importações de cápsulas 
para utilização nas máquinas NESPRESSO® tanto domésticas quanto institucionais. 
Tais máquinas, com desenho absolutamente encantador/arrojado, preparam 
espresso a partir de cápsulas de variadas origens e misturas, extraídas à 
pressão de 19 bares. O resultado na xícara é dos mais desejáveis, conquistando 
de imediato a maior parte dos apreciadores da bebida. A empresa não se limita a 
buscar a excelência, mas está intimamente vinculada aos cafeicultores 
fornecedores, amparando inclusive financeiramente as necessidades de 
ajustes/investimentos em sua estrutura produtiva e de preparo, segundo 
instruções advindas da empresa certificadora (RainForest®) e de outras 
tendências percebidas em mercados mais ambientalmente/socialmente adiantados. 
Ademais, conscientiza seus clientes para que tragam suas cápsulas usadas para 
reciclagem, estabelecendo por meta o recolhimento e reaproveitamento de 80% 
delas até 201410 e a redução em 20% de sua pegada de carbono até 
2013.              
Estratégia das mais complexas estruturou a transnacional de agroquímicos 
Syngenta®. Percebendo que, se se mantivesse exclusivamente no suprimento de 
insumos aos cafeicultores estaria limitando suas potencialidades de crescimento 
econômico, buscou avançar na cadeia de valor criando empresa irmã que 
aproximasse micro e pequenos torrefadores dos países do Hemisfério Norte aos 
cafeicultores brasileiros11. Valendo-se de derivativos financeiros 
que permitem a troca de café por insumos e estimulando os cafeicultores a 
implementar boas práticas agrícolas com rastreabilidade, a empresa logrou, em 
2011, negociar cerca de 300 mil sacas com garantias ao torrefador de entrega de 
produto com alta qualidade, angariando assim significativo prêmio para o 
produtor. A empresa incentiva a contratualização entre as unidades de produção e 
os industriais conferindo horizonte econômico para a atividade agrícola. Ao 
internalizar margens por meio do avanço na cadeia de valor (encurtamento da rede 
de intermediação) e propiciar menor volatilidade nos preços recebidos pelos 
cafeicultores, a empresa criou uma espécie de jogo ganha-ganha, sendo exemplo 
mais palpável de consolidação de uma classe média rural, orientação que 
aparentemente, ainda, não sensibiliza as esferas dos governos. 
             São 
poucos os casos entre as torrefadoras que atuam no mercado brasileiro que ao seu 
modo saíram dos trilhos. O Café do Centro®, por exemplo, conduzido por dupla de 
jovens empreendedores, apostou no mercado gourmet, na segmentação da 
linha de cafés (seleção por regiões/estados produtores), em embalagens 
desenhadas com estilo, na recusa ao varejo tradicional voltando-se para o 
suprimento do mercado institucional e na internacionalização da marca por meio 
do franqueamento. Adotando esse rol de estratégias, a empresa conseguiu crescer 
a taxas de dois dígitos nos últimos anos, obtendo ainda reconhecimento de alta 
excelência no mercado japonês, onde já soma três estabelecimentos servindo o 
café que é inteiramente processado, embalado e exportado a partir de sua 
torrefadora em Adamantina, Estado de São Paulo.              Outra 
torrefadora que se destacou no cenário brasileiro foi o Café Bom Dia® de 
Varginha, Estado de Minas Gerais. Firmemente decidido a agregar valor ao 
produto, seu CEO decidiu por exibir seu café Marques de Paiva nas gôndolas das 
lojas do Walmart® estadunidense. Não apenas conseguiu distribuir seu café na 
rede como ainda, em prova cega conduzida por rede de televisão de ampla 
penetração no país, selecionou-o como o produto de melhor relação 
custo/benefício disponível naquela rede. A ousadia do empresário, associada ao 
momento oportuno (enquete televisiva), alçou a companhia a patamares que outras, 
congêneres, sequer um dia cogitaram.              O 
fundador da rede de cafeterias Starbucks® escreveu em sua autobiografia que a 
origem brasileira não poderia participar do blend da companhia por não 
reunir atributos de excelência. Ele inverteu seu posicionamento e, atualmente, 
adquire mais de 1 milhão de sacas do produto verde amarelo. Após essa guinada, a 
empresa, que passou por dificuldades financeiras entre 2007-2010, retomou 
trajetória de crescimento, estimando haver espaço para a abertura de até 1.000 
pontos de oferta da bebida apenas no Brasil12. Para não especialistas 
os fatos são apenas ocorrências aleatórias, quando na verdade, já entre os 
especialistas, o forte incremento da origem brasileira no blend confirma 
sua aptidão para o preparo espresso, contribuindo para uma mais acentuada 
fidelização dos apreciadores, pois a experiência sensorial de cada um se 
enobreceu. Não faltou coragem para o CEO da companhia em por em prática a 
expressão 'esqueçam aquilo que escrevi'!              Os 
poucos casos listados não tem a pretensão de esgotar as iniciativas que 
demonstram a saída dos trilhos. Os exemplos selecionados reúnem conjunto de 
estratégias diferenciadas em que prevalece a complementaridade face a esperada 
competição. O caminho até aqui conduzido é o de que a reinvenção do negócio café 
não tem um líder ou dono, mas ao contrário, forma um leque de possibilidades 
alternativas construídas e selecionadas pelos agentes econômicos na busca de 
fortalecer seu negócio, cuja coluna mais robusta são os cafés do 
Brasil.  1A imagem de sair dos 
trilhos significa a atitude de buscar novas formas de transacionar café em 
contraposição àquela de aguardar o pedido do importador ou a reposição na 
gôndola do varejista. O autor agradece ao apoio e aos oportuníssimos comentários 
do prof. Dr. Ricardo Abramovay. 
 2WOLF, M. Acabou a era do 
crescimento? Jornal Valor Econômico, São Paulo, 03 out. 2012. Disponível 
em: <http://www.valor.com.br/opiniao/2853102/acabou-era-do-crescimento>. 
Acesso em: out. 2012. 
 3VOLPON, T. A crise é 
permanente, mutante e contagiosa. Jornal Valor Econômico, São Paulo, 24 
set. 2012. Disponível em: 
<http://www.valor.com.br/brasil/2838436/crise-e-permanente-mutante-e-contagiosa>. 
Acesso em: out. 2012. 
 4Tampouco o otimismo na 
acepção do filósofo da Rainha.  5Conforme original: 
Companies will have to change the way they do business, to deliver long-term 
sustainable growth. The old model of ever-greater consumption, with growth at 
any price, is broken. SOURRY, A.; CHAIRMAN; UNILEVER UK & 
IRELAND. Consumer future 2020 - scenarios for tomorrows consumers, 
London, 2011. 69 p. 
 6A elegante equação 
proposta por Marx e, formalmente, aceita por Keynes assim expressa: D (dinheiro) 
- M (mercadoria) - D’ (mais dinheiro). 
 7Depoimento recolhido de 
palestra do prof. Dr. Ricardo Abramovay durante o VI Encontro Nacional de 
Estudos do Consumo e II Encontro Luso-Brasileiro de Estudos do Consumo. ESPM, 
Rio de Janeiro, 2012. 
 8A expansão do mercado de 
café mundial é de aproximadamente 2% ao ano. As tecnologias de embalagens, 
talvez, constituam a única exceção a hipótese do baixo 
crescimento. 
 9Este autor foi um dos 
participantes da expedição 2012 do NESPRESSO® Experience. Nessa edição, além do 
conhecimento da estratégia do programa ECOLABORATION®, foram visitados 
cafeicultores fornecedores e não fornecedores da empresa, laboratório de 
classificação e prova da bebida. 
 10O percentual de 
recuperação de cápsulas utilizadas no Brasil em 2012 já é de cerca de 20%. A 
Veja SP, em pesquisa conduzida no primeiro semestre de 2012 sobre o hábito de 
consumo do café entre paulistanos, estimou que a penetração das máquinas 
NESPRESSO já atingisse mais de 20% dos domicílios. 
 11Para detalhes, ver o 
sítio na internet disponível em: 
<http://www.nucoffee.com.br/>. 
 12Compõem a rede no 
Brasil 64 estabelecimentos.  Palavras-chave: estratégias 
empresariais, mercado de café. 
 
  
  
 
  
  
  
  
  
  
  
  
  
_____________________________________________________________________________________ 
  
Data de Publicação: 16/10/2012
Autor(es): Celso Luís Rodrigues Vegro (celvegro@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor

                    
                        