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Do Bonde ao Trem-bala: o fim do domínio da genética pública e o novo padrão de financiamento do custeio agropecuário
                    
                      Há 
anos, em diversas oportunidades, tem sido apontado o problema da queda da 
importância, para a agropecuária brasileira, das sementes selecionadas de 
materiais genéticos produzidos pelas instituições públicas de pesquisa. De 
domínio quase absoluto na modernização agropecuária dos anos 1970, quando, 
exceto talvez no caso do milho híbrido, todas as sementes selecionadas 
utilizadas eram oriundas da genética pública. Essa realidade era decorrente da 
existência da "divisão do trabalho" de inovação tecnológica para a agricultura 
baseada no emprego dos insumos modernos (fertilizantes e máquinas), cuja 
expansão fora estimulada pela criação de demanda sustentada no crédito 
subsidiado para fazer frente à abertura de mercado para as novas plantas 
agroindustriais produtoras desses insumos, com base no II Plano Nacional de 
Desenvolvimento (II PND) que, para as mudanças estruturais da agricultura 
brasileira, foi mais importante que o Plano de Metas JK.              Mas a 
realidade atual se mostra diametralmente oposta com a privatização de 
praticamente toda base genética das principais commodities agropecuárias 
brasileiras. Tomando como exemplo as relevantes lavouras de cana para indústria, 
soja, milho e algodão, a quase totalidade do material genético utilizado 
consiste em genética privada e não mais da genética pública, o que desde logo 
mostra a importância dos investimentos privados em pesquisa e desenvolvimento 
biológico na agricultura. E isso há muito tempo, pois o domínio no milho ocorre 
desde os anos 1960, sendo mais recente para os demais.              Nem 
sempre esse tema foi tratado com consistência e qualidade pelos analistas 
setoriais e da grande mídia. Mas, nos últimos dias, a Agência Estado publicou o 
excelente e corajoso artigo de Celso Ming que, de forma pioneira na grande 
mídia, tratou do tema no artigo "A EMBRAPA perdeu o bonde", datado de 1 de abril 
de 2012. Esse artigo, que deve ser lido e refletido, toca na ferida ao partir da 
constatação óbvia para os conhecedores da agropecuária, mas para muitos inédita, 
de que houve redução da "participação" das varie-              
Argumentando de maneira complementar ao colocado no artigo, mostra-se necessário 
compreender de forma adequada a grande mudança no padrão de financiamento do 
custeio da safra da agropecuária brasileira, que condena à insignificância a 
participação das sementes de variedades públicas não apenas da EMBRAPA, mas 
também de todas as estruturas publicas de pesquisa, inclusive a relevante 
pesquisa estadual paulista, que havia criado a agricultura tropical brasileira 
com o lançamento do café IAC Mundo Novo em 1952 e, consequentemente, libertou o 
café da inexorabilidade de ser plantado apenas em terra roxa a qual estava preso 
desde a constatação dos nematoides no café do Vale do Paraíba no século XIX, e 
que agora poderia ser cultivado nos podzolizados e nos cerrados. Essa mesma 
pesquisa paulista que, na entrada dos anos 1970, lançou a IAC 12 para baixa 
latitude naquilo que se convencionou chamar soja tropical. Pois bem, essa 
liderança da genética pública está sendo corroída e desapareceu em lavouras 
relevantes que não apenas a soja.              O 
algodão nos anos 1970 e 1980 era todo cultivado a partir da genética pública 
paulista (variedades IAC). O algodão dos cerrados, que avançou na segunda década 
dos anos 1990 mais que a mecanização da colheita e a enorme escala, foi 
sustentando pela troca do material genético público (IAC) do algodão meridional 
(SP e PR) pelas variedades importadas. Lembre-se que a construção da 
cotonicultura brasileira em terras paulistas e depois paranaenses foi resultado 
da genética pública paulista que ganhou reconhecimento mundial, inclusive, com 
elogios de nada menos que Theodore Schultz, Prêmio Nobel de Economia. E pouco se 
falou dessa mudança que não decorreu de transgenia, mas de variedades da 
genética tradicional. Esse fato mostra que o caso da soja consiste em apenas 
mais uma etapa de um processo mais longo e inexorável; basta não voltar as 
costas para a história.              E vem 
sendo acelerado com a brutal mudança na lógica de tomada de decisão dos 
lavradores frente ao novo padrão de financiamento, em especial do custeio 
agropecuário. Como era nos anos 1970, quando a modernização agropecuária se 
materializou com base na liderança do material genético produzido pela pesquisa 
pública? O lavrador ia ao banco (principalmente ao Banco do Brasil), tomava 
crédito rural subsidiado e com isso passava a adquirir os insumos dentre os 
quais as sementes selecionadas que respondiam a fertilizantes, que por esse 
móvito eram denominadas de variedades de alta resposta (VAR). O lavrador tomador 
de crédito com dinheiro na conta era senhor da escolha do material genético e 
tinha o suporte de ampla rede de assistência técnica e extensão rural cujo 
atributo era disseminar a genética pública, mesmo porque era a 
disponível.              Esse 
padrão de financiamento com base no crédito subsidiado foi desmontado em 
expressão a partir da crise da dívida pública da entrada dos anos 1980. E com as 
plataformas produtivas, as empresas de insumos e das agroindústrias, 
estruturadas no II PND, passaram a oferecer mecanismos privados para financiar o 
custeio das safras, cuja forma pioneira foi exatamente o contrato soja verde. 
Nos anos 1990, mais propriamente em 1995, foi criada a Cédula de Produto Rural 
(CPR) tornada com liquidação financeira em 2000. No mesmo quinquênio, foram 
editadas as novas legislações regulatórias sobre sementes e direitos de 
propriedade intelectual. E nos anos seguintes as empresas de insumos 
agroquímicos compraram muitas das sementes privadas. Também a denominada reforma 
do setor público praticamente extinguiu a capacidade de atuação local das 
estruturas públicas de assistência técnica e extensão rural, que eram a base da 
disseminação das sementes públicas. Basta ver a magnitude da antiga rede 
estadual paulista de "casas da lavoura", que atualmente praticamente inexiste. E 
quem dá a assistência técnica são as poderosas redes de representação e 
assistência técnica das empresas privadas de sementes, que multiplicam ensaios 
de demonstração em todo espaço relevante de produção das principais 
lavouras.              Sem a 
assistência técnica e extensão rural pública para sustentar a irradiação de seus 
resultados - material genético para manter padrão de alta resposta nas culturas 
anuais e troca variedade praticamente todo ano -, e sem acesso ao novo padrão de 
financiamento, a genética pública ficou de mãos amarradas. E os avanços dos 
instrumentos privados foram ampliados pelas políticas federais, quando em 2004 
foram ampliadas as "famílias" de títulos financeiros dos agronegócios (CDCA, 
CRCA, LCA e WA). Trata-se de um novo padrão de financiamento com base na venda 
antecipada baseada em títulos financeiros. Os planos de safra para as grandes 
lavouras, pelas suas regras, cobrem no máximo um terço do custeio da safra. E 
semente é custeio. Com isso, os lavradores que plantavam para vender passaram a 
vender para plantar, numa inversão completa da lógica da tomada de decisão de 
produzir. As diferenças de produtividade e de qualidade entre as sementes das 
várias origens (publicas ou privadas) para as principais lavouras são pouco 
relevantes (em torno de 5% a 7%).              E as 
empresas de sementes privadas (na maioria também ofertantes de agroquímicos) 
utilizaram-se desses mecanismos para ocupar o mercado de sementes. E como isso 
afeta a genética pública? As estruturas públicas, e mesmo a EMBRAPA, não têm 
mecanismos para emitir títulos financeiros como as empresas privadas. A partir 
disso, as sementes públicas foram simplesmente alijadas do mercado, com uma 
mãozinha no caso da soja pela emergência da transgenia. Por certo os aspectos 
ideológicos são maléficos, mas se constitui num célere equívoco a afirmação de 
que a EMBRAPA perdeu o bonde. Na verdade, o trem-bala do capital financeiro não 
parou na estação da genética pública. E com portas fechadas para acesso ao novo 
padrão de financiamento, a genética pública está no modelo atual condenada à 
insignificância, em especial paras as lavouras de escala. Foi mais ou menos o 
que ocorreu com os agrotóxicos, para os quais as empresas de agroquímicos só 
registram para lavouras de escala em termos de área cultivada. Daí a ANVISA 
detecta o seu uso numa lavoura de pequena superfície cultivada e condena o 
consumo por uso de produto proibido, sem destacar de forma transparente que o 
problema é de não registro, pois ele foi registrado para o cultivo da couve e 
não para o do alface no qual foi detectado.              E 
novos desdobramentos estão por vir e já se tornam palpáveis, como o fato de que 
uma grande multinacional comprou empresa de ponta da genética canavieira e 
recentemente lançou novos materiais genéticos num mercado que há décadas já era 
totalmente dominado pela genética privada – com participação insignificante da 
genética pública -, mas de capital nacional.              Em 
síntese, há que ser comemorada a publicação do artigo de Celso Ming pela coragem 
de trazer a público essa evidência inexorável da perda de espaço da genética 
pública para a agricultura. Ela está condenada à insignificância no modelo 
institucional atual face ao padrão de financiamento do custeio da safra via 
venda antecipada lastreada em títulos financeiros emitidos pelo setor privado. 
Ao menos para as grandes lavouras, o trem-bala do capital financeiro no custeio 
da safra fechou as portas na cara da pesquisa pública. Assiste-se à 
internacionalização da base genética da agropecuária brasileira. E há que se 
discutir ainda a enorme regressividade desse modelo de financiamento do custeio 
de safras via venda antecipada lastreada em títulos financeiros. As próprias 
regras, além da falta de traquejo para operar nesse mercado, colocam à margem do 
processo massas expressivas de lavradores. Em suma, há que se reiventar a ação 
pública para a agricultura brasileira que não mais viaja no bonde do crédito 
subsidiado, mas no trem-bala do capital financeiro.  Palavras-chave: 
pesquisa pública, 
genética pública, agricultura brasileira, novo padrão de 
financiamento.   
  
  
dades de soja produzidas por essa importante 
empresa pública de pesquisa e desenvolvimento na área plantada brasileira com 
essa leguminosa estratégica. 
  
  
  
  
  
  
  
  
  
Data de Publicação: 05/04/2012
Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor

                    
                        