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Os Dois Circuitos da Economia Agrícola: o caso do biodiesel
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Lançado em 2005 com status de projeto estratégico pelo governo federal, o 
Programa Nacional de Produção de Biodiesel (PNPB) almeja obter sucesso econômico 
semelhante ao Pró-Álcool, sem desencadear os processos de concentração produtiva 
e fundiária deste. Focado em veículos pesados, propõe-se com este programa 
consolidar o país como potência bioenergética no plano internacional, assim como 
gerar renda aos agricultores menos capitalizados. 
             O que 
há de inovador neste projeto agroenergético é o fato de se voltar para a 
inclusão econômica do pequeno agricultor familiar: condicionante prevista nos 
requisitos de concessão de facilidades pelo governo federal aos produtores de 
biodiesel desde o início do projeto, cujo interesse prioritário estava em 
valorizar a cadeia produtiva da mamona no processo de fabricação do biodiesel. 
Principalmente por ela ser uma planta desde longo tempo adaptada ao inóspito 
clima do sertão nordestino, e à qual o pequeno produtor familiar sertanejo, 
quase desprovido de capital e de acesso a conhecimentos de técnicas agrícolas 
modernas, já está habituado, cultivando-a em forma consorciada com sua produção 
de alimentos. 
             O 
biodiesel vem sendo misturado ao diesel mineral de forma gradativa, via taxa 
crescente de diluição do combustível de petróleo pelo vegetal/animal. Um aspecto 
interessante da produção de biodiesel diz respeito a sua enorme gama de 
matérias-primas potencialmente utilizáveis: soja, algodão, amendoim, girassol, 
mamona, dendê, babaçu, macaúba, buriti, pupunha, andiroba, copaíba, sebo animal 
etc. Isso quer dizer que várias regiões do extenso território nacional podem se 
especializar numa diferente fonte primária de obtenção de 
óleo. 
             A 
isto se pode acrescentar o fato de que as distintas regiões agrícolas do país 
(tais como a área agroindustrial moderna da soja em Mato Grosso ou o sertão 
semiárido da Bahia, por exemplo), por apresentarem diferentes estereótipos de 
agricultores, possuidores de diferentes origens social e histórica, diferentes 
mentalidades e hábitos, acarretam em diferenciações espaciais acerca da 
constituição desses arranjos produtivos, que variarão em suas características 
dependendo do local/região em que se encontram. É notável a capacidade do 
sojicultor mato-grossense em adotar técnicas agrícolas baseadas em acesso à 
ciência, à informação e ao crédito, constituindo um circuito moderno da 
agricultura brasileira, com ligações fluidas que alcançam o mercado 
internacional. Ela é maior que a do ricinocultor baiano, sendo este mais 
amparado na força da tradição e integrante de um circuito inferior da economia 
agrícola que, fazendo uso de técnicas rudimentares e produção de subsistência, 
apresenta-se limitado sem interligações com escalas mais amplas no espaço 
geográfico, restringindo sua atuação de negócios prioritariamente na delimitação 
local. 
             Dessa 
forma, ainda que exista um marco regulatório favorável ao pequeno produtor, a 
soja predomina como matéria-prima básica na fabricação do biodiesel no Brasil 
(74% em 2008), que é produzida sob os moldes da "revolução verde", em grandes 
propriedades rurais e com amplo uso de capital, técnica e informação. O restante 
da produção é de 19% de sebo animal, 5% de caroço de algodão e 2% de outras 
plantas como a mamona2. 
             Sendo 
assim, apesar do esforço do governo, a produção das áreas de especial interesse 
de desenvolvimento do PNPB tem pouco espaço no contexto nacional de fabricação 
de biodiesel. Em 2008, o Centro-Oeste, Sudeste e Sul concentraram os maiores 
volumes de produção do combustível, como também as maiores taxas de crescimento 
proporcionalmente ao ano de 2007: o Mato Grosso, com implemento de quase 1.800% 
em relação ao ano anterior, converteu-se no segundo principal produtor nacional. 
Já a Bahia viu sua produção recuar em 7% no mesmo período, caindo da segunda 
para a quinta posição entre os Estados que mais geraram biodiesel no 
país. 
             No 
caso da mamona, a primeira planta-piloto (usina experimental) de produção de 
biodiesel da Petrobras, instalada pelo governo federal no polo industrial de 
Guamaré, no Rio Grande do Norte, produz biodiesel em caráter experimental desde 
2005. Neste Estado, o Programa do Agronegócio da Mamona está incentivando o 
plantio de 10 mil hectares de mamona por ano, com assistência técnica fornecida 
pelo Instituto de Assistência Técnica e Extensão Rural do Rio Grande do Norte 
(EMATER-RN). A mamona também é alvo de projetos de pesquisa da Empresa 
Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), realizados sobretudo na unidade 
localizada na Paraíba. O objetivo é torná-la economicamente viável para a 
produção de biodiesel via melhoramento genético. Instituições públicas como o 
Banco do Brasil e o Banco do Nordeste vêm financiando a lavoura familiar por 
meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) 
vinculado ao Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), 
auxiliando-a. 
             Um 
esforço da esfera pública em desenvolver a cultura mamoneira com finalidade 
energética é a recente construção de uma esmagadora de grãos localizada em 
Lapão, município localizado no Estado da Bahia. Trata-se de um local que visa 
centralizar a compra da colheita de pequenos agricultores. Em seguida o óleo 
extraído será totalmente comprado pela Petrobras, que garante pagar um valor 
superior ao praticado pelos "atravessadores" do mercado. 
             Em 
relação à mamona, contudo, pode-se constatar algumas dificuldades no uso desse 
óleo para a produção de biodiesel. Em primeiro lugar, destaca-se o atraso 
técnico do agricultor familiar, tradicional plantador de mamona. Sua 
ineficiência lhe rende uma baixa produtividade média por hectare, e a 
generalizada ausência de contabilidade não lhe permite saber ao certo seus 
ganhos e suas perdas a cada safra. Percebe-se, grosso modo, que a situação lhe 
está bastante difícil e que, se não fossem as variedades de bolsas e auxílios 
econômicos dados pelo governo, possivelmente ele não teria condição sequer de 
sobreviver. Este vive endividado e é muito comum usar sua pequena safra de 
mamona para "quitar dívidas" no mercadinho (secos e molhados, vendinha e 
mercearia) do povoado, ou para "fazer a feira" aos finais de semana. Leva-se um 
saco de mamona à cidade ou ao povoado mais próximo da roça, e o troca por 
alimentos, bebidas, insumos de uso doméstico em geral etc. Pode-se mesmo dizer 
que nesta região o saco de mamona possui poder de troca semelhante ao da moeda. 
Quando cultivada enquanto lavoura, é comum vê-la como policultura: está quase 
sempre associada ao plantio de alimentos - feijão, milho, mandioca, melancia, 
abóbora etc. É dessas roças de onde se tiram a maior parte do alimento (que pode 
ser tanto para autoconsumo quanto para venda do excedente) e a 
mamona. 
             No 
caso da soja, sua produção foi praticamente insignificante no Brasil até os anos 
1960. Inicialmente plantada na Região Sul do país, teve uma migração massiva ao 
Centro-Oeste, sobretudo para o Mato-Grosso, após ser geneticamente adaptada ao 
clima e aos solos do cerrado. Num curto período de aproximadamente 30 anos 
(1979-2009), tornou-se a principal lavoura do país, ocupando mais de 22 milhões 
de hectares. Entre as principais empresas que atuam no setor estão a ADM, a 
Bunge, Cargill, Louis Dreyfus e Amaggi. Interessante notar que a ADM, gigantesca 
multinacional norte-americana, possui uma usina de biodiesel em Rondonópolis, 
Estado de Mato Grosso. Neste mesmo município está sediada a Amaggi, empresa 
controlada por Blairo Maggi, governador deste Estado, considerado o maior 
produtor individual de soja do mundo. Hoje o Mato Grosso concentra 30% da 
produção de soja do país, e lá se encontram facilmente latifúndios de 5 mil, 10 
mil e 40 mil hectares, tendo o maior deles, localizado em Barra do Garças, mais 
de 150 mil hectares. A devastação pressiona a floresta amazônica de maneira 
constante, seguindo-se via de regra três etapas consecutivas de exploração 
comercial: primeiro a retirada de madeira, em seguida o estabelecimento de 
pastagens e por fim o plantio da soja. 
             Com o 
surgimento do PNPB, e a consequente necessidade de se adicionar aproximadamente 
800 mil m³ de óleos vegetais nos cerca de 40 milhões de m³ de diesel mineral, a 
soja logo se apresentou como uma cultura indispensável nesse processo. A 
produção de biodiesel passou a ser vista pelo complexo sojeiro como mais uma 
opção, quase que uma válvula de escape, espécie de controle regulador de preços, 
evitando crises de excesso de oferta do grão. Calcada em grandes unidades 
produtivas, no emprego de mão-de-obra relativamente qualificada, altamente 
capitalizada e tecnificada, insere-se totalmente no circuito superior da 
economia agrícola. 
             Sendo 
a área dedicada ao cultivo da soja mais de 120 vezes maior que a dedicada ao 
cultivo da mamona, aquela é, para a produção do biodiesel, uma espécie de 
antítese desta. Por isso, afirma-se que, ainda que seja evidente e concreto o 
apoio oficial do PNPB, dado à utilização de oleaginosas consideradas 
"alternativas", a produção brasileira de biodiesel ainda não deslanchou nesta 
direção. É justamente o inverso que ocorre, já que o que se vê é o 
fortalecimento do agronegócio, sobretudo o da soja na cadeia de produção do 
biodiesel brasileiro. 
 Considerações 
Finais 
             O 
País está diante de um grande desafio agrícola, energético, econômico e social, 
no qual não faltam iniciativas a serem tomadas por parte do poder público e 
tampouco possibilidades para empreendimentos privados. Por um lado, valorizam-se 
áreas modernas da agricultura nacional, via criação e incentivo de uma nova 
demanda. Por outro, tenta-se inserir a zona semiárida, densamente povoada e 
tradicionalmente marcada pela pobreza de seus habitantes, dando-lhes uma nova 
esperança. 
             
Espera-se que, assim como está proposto pelo programa, haja equilíbrio entre 
inclusão social, respeito ao meio ambiente e geração de renda. Busca-se também 
que, com uma maior organização dos movimentos sociais ligados ao pequeno 
agricultor familiar, com as pesquisas atreladas à transformação agroindustrial 
de sua safra e com o estabelecimento de novas parcerias, eles consigam ver 
melhorias em seu dia-a-dia. 
             Sendo 
assim, diante das propostas presentes no projeto oficial do PNPB, que visa se 
inserir a partir de um tripé tendo o desenvolvimento baseado nas variáveis 
social, ambiental e econômica, pode-se reparar que em sua execução empírica, 
apenas o aspecto econômico tem sido cumprido, ficando os aspectos social e 
ambiental aquém do estabelecido inicialmente. Pautado somente nos custos 
relativos de curto prazo para uma produção em grandes escalas do biodiesel – 
mais vantajoso para o estruturado circuito de produção da soja em relação ao da 
mamona -, nunca se conseguirá potencializar a agricultura familiar e reverter 
nossa formação socioespacial tão marcada pela concentração de renda e fundiária 
no campo brasileiro. Por isso, considera-se fundamental atrelar uma política 
ampla de subsídios aos produtores agrícolas de mamona que, com estudos 
prospectivos de maior produtividade agrícola da planta, possibilitem o 
desenvolvimento econômico do biodiesel no país concomitante ao desenvolvimento 
social. 
             Por 
final, resta ao governo a complexa tarefa de fazer dialogar e cooperar elementos 
representativos dos dois circuitos da economia agroenergética: o 
inferior, ainda não plenamente contemplado conforme as proposições originais do 
projeto, e o superior, tradicionalmente gerador de profundas desigualdades 
sociais e da degradação ambiental que tanto marcam nosso 
país. 
 ____________________  2SAMPAIO, M. A. P. Programa 
Nacional de Biodiesel: comparação entre dois "Brasis". In: Encuentro de 
Geógrafos de América Latina,12., Montevideo (Uruguay), 2009. Anais... 
Montevideo: Universidad de La República. Montevideo, 2009. (Trabajo, n. 
6233). 
 Palavras-chave: circuitos 
da economia agrícola, circuito superior, circuito inferior, 
biodiesel. 
1A ideia dos dois circuitos da economia 
agrícola se remete à mesma compreensão apresentada para o espaço urbano em: 
SANTOS, M. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países 
subdesenvolvidos. São Paulo: EdUSP, 2002. 
Data de Publicação: 16/07/2009
                Autor(es): 
                Danton Leonel de Camargo Bini (danton.camargo@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Mateus De Almeida Prado Sampaio (mapas@usp.br) Consulte outros textos deste autor              

                    
                        