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(Des) emprego urbano e reforma agrária: o que um tem a ver com o outro?
A notícia parece o enunciado da desesperança: o desemprego bate recorde histórico na grande São Paulo, alcançando 20,6% da População Economicamente Ativa (PEA). Vem a ser a maior taxa desde 1985, ano em que a pesquisa foi realizada a primeira vez pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (SEADE)1 em parceria com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócio-Econômicos (DIEESE)2. 1 SEADE www.seade.sp.gov.br
A pesquisa, divulgada recentemente, aponta que o número total de desempregados é
de 1,94 milhão de pessoas, resultado principalmente do encolhimento de 3,6% da
produção da indústria paulista em abril de 2003 em relação ao mesmo mês de 2002.
Não se vai entrar no mérito da afirmação do ministro do Planejamento, Guido
Mântega, de que um 'surto de crescimento' deverá reverter o quadro do desemprego
ainda no segundo semestre deste ano como uma reação aos investimentos, ou da
justificativa do ministro do Trabalho, Jaques Wagner, de que um dos motivos da
taxa recorde de desemprego em São Paulo estaria no fato de as pessoas,
notadamente entre 19 e 35 anos, estarem à procura de emprego para elevar a renda
familiar - em função da abrupta queda da renda populacional.
O fato é que nas referências feitas às soluções cabíveis mais uma vez não ocorre
um comentário sequer a respeito das potencialidades da reforma agrária para
atenuar esse problema e, como comenta a Força Sindical, apagar de vez o risco de
um barril de pólvora na região metropolitana.
Nesse sentido, e a título de exercício, vale destacar os comentários de Ronaldo Coutinho Garcia, técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA)3, em relatório sobre o desenvolvimento rural. Segundo este conteúdo, no final do governo passado, dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA)4 davam conta de que fora alcançado um desempenho que
possibilitou o assentamento de quase 75.000 famílias/ano, em condições bastante
precárias, mas assim mesmo superando as situações do início das décadas de 1980
e 1990. A atual capacidade operacional e financeira do INCRA poderia atender ao
assentamento de no mínimo 90.000 famílias/ano.
Enquanto isso, o Programa Nacional de Agricultura Familiar (PRONAF),
estabilizando-se em termos de cobertura, conseguiria alcançar algo em torno de 1
milhão de agricultores, o que é um impacto muito pequeno para um universo onde
vivem em condições lamentáveis entre 34 e 52 milhões de pessoas, demandando
terra e meios de produção, serviços públicos e infra-estrutura.
As intervenções mais recentes do Estado foram insuficientes para se contrapor ao
caos que, anualmente, se reforça no campo: mais de 210.000 famílias rurais
emigram; em torno de 100.000 pequenos estabelecimentos rurais desaparecem;
550.000 postos de trabalho deixam de existir na agropecuária. Em cinco anos
(1995 a 1999), a atuação governamental propiciou a criação de 373.220 novos e
precários estabelecimentos rurais (perto de 1/3 dos que desapareceram), gerou
1,2 milhão de ocupações (22% dos empregos que se foram) e teria retido no meio
rural o equivalente a 18% do contingente que emigrou.
Contudo, na média do período compreendido entre 1995 e 1999 foi assentado um
número de famílias que correspondeu a apenas 2% da demanda total por reforma
agrária. Em 2000 e 2001, 1,2% e 1,0%, respectivamente, de famílias foram
assentadas, de um total demandante de 3.447.200 em 2000 e 3.412.700 em 2001.
Apesar de contrastes tão contundentes, para não dizer chocantes, Coutinho afirma
em seu relatório que redistribuir terra para 3,4 milhões de famílias rurais e
assegurar-lhes adequadas condições de vida e de produção é muito factível. Seus
cálculos partem do princípio de que o custo médio/família deve ser de
R$30.000,00/família - representando em quatro anos um investimento de R$102
bilhões, o que corresponde a 29,5% das despesas com juros da dívida em 2001.
Tamanha intervenção implicará no crescimento vultoso das demandas ao
macrocomplexo agroindustrial (à montante e à jusante da área reformada). Também
o fato de serem colocados em funcionamento mais ou menos 100 milhões de hectares
exigirá máquinas, corretivos, fertilizantes, sementes, instalações e unidades de
processamento que em alguns casos poderão superar a capacidade instalada. Assim,
se por exemplo cada 200 hectares em produção exigirem um trator pequeno, a
demanda global superará a marca de 500.000 unidades, dez vezes a máxima produção
anual alcançada nos últimos 30 anos.
Admitindo-se para o conjunto da economia brasileira um efeito multiplicador do
emprego de dois para cada ocupação nos assentamentos (média de três por família
assentada), teríamos a criação de mais de 30 milhões de postos de trabalho,
correspondente a 40-45% da PEA.
Tudo bem esperar e crer no 'surto de crescimento' revelado em poucas palavras
pelo ministro Mântega. Tudo bem aceitar a tese de que as soluções para que a
economia brasileira saia da estagnação começam pelo rebaixamento 'sustentável'
dos juros, para que, assim, haja a recuperação do consumo, etc, etc, etc.
Por outro lado, é óbvio que a reforma agrária, por si só, não é a solução para
todos os problemas que emperram nosso desenvolvimento. Mas, efetivamente, já
passou da hora de ser levada em consideração. Principalmente quando o desemprego
atinge graus elevadíssimos na escala 'Richter' da nossa economia.
Enfim, fica para o final lembrar que uma reforma agrária profunda só poderá dar
certo e inaugurar um novo estilo de desenvolvimento se os assentados tiverem
acesso à tecnologia para tornar seus produtos competitivos. E a viabilização de
um projeto como este custa muito dinheiro, o que implica uma discussão com a
sociedade tão profunda quanto a própria reforma, embora muitos acreditem - e
isso será um dos temas da discussão - que ela se pagará com benefícios
econômicos e sociais dificilmente obtidos em outra intervenção com o mesmo
custo.
2 DIEESE www.dieese.org.br
3 IPEA www.ipea.gov.br
4 INCRA www.incra.gov.br
Data de Publicação: 06/06/2003
Autor(es): José Eduardo Rodrigues Veiga (zeveiga@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor