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Agronegócios: a irreparável falta de Censo recente
As
mudanças estruturais dos agronegócios brasileiros, nas últimas décadas,
representam um fato histórico reconhecido e aceito pela opinião pública
nacional. Nos anos 80, para muitos 'a década perdida' da economia brasileira, a
agricultura, com base nas contas nacionais, avançou a taxas superiores à da
economia do país. Em
síntese, o processo de transformação da agricultura brasileira, nos últimos
vinte anos, foi tão profundo que a realidade não se reconhece mais no seu
derradeiro retrato estrutural fidedigno representado pelo censo agropecuário de
1985. Por essa razão, causa preocupação a informação do adiamento da realização
do censo agropecuário antes programado para 2005³. Mais ainda, causa estranheza
a persistência da mesma razão aventada desde os anos 90, qual seja a falta de
verbas para a pesquisa. Mais uma vez, a falta de bom senso produz a falta de bom
censo. ¹ REDHER, Marcelo Desemprego quase dobra em dez anos. O Estado de São Paulo, 15 de novembro de 2004, p. B1 (Caderno Economia & Negócios). ² GONÇALVES, José S. Ter Bom Censo é Questão de Bom Senso. Informações Econômicas 25(12):7-8, 1995. ³ CARDOSO, Fátima Censo agrícola é adiado de novo. O Estado de São Paulo, 19 de novembro de 2004, p. B20 (Caderno Economia
& Negócios).
Nos anos 90, num suceder de 'supersafras' de grãos e fibras iniciado em 1989,
transformações aprofundaram as mudanças da década anterior. Isto permitiu que os
agronegócios entrassem no novo século alavancando a renda interna e sustentando
seguidos e crescentes superávits na balança comercial nacional. De outro lado,
ainda que com esse desempenho, entre 1993 e 2003, houve a perda absoluta de 1,8
milhão de empregos na agropecuária, o primeiro elo das cadeias de produção da
agricultura¹.
A análise estrutural dessas mudanças é fundamental para a compreensão da
essência do processo de desenvolvimento, não apenas nas suas relações produtivas
mas, principalmente, nos seus corolários na sociedade brasileira em geral. Mais
que produzir alimentos e matérias-primas, a agricultura tem a função primordial
de regulação do mercado de trabalho.
Nesse sentido, um instrumental essencial está representado nas séries de censos
agropecuários, que, enquanto radiografias de cada momento histórico, permitem,
na sua seqüência lógica com periodicidade temporal conhecida, estabelecer a
compreensão da realidade no seu devir histórico, lançando mão de elementos
empíricos consistentes. A realização e a publicidade de censos agropecuários
consistentes, para a consolidação da sociedade democrática que só se dá na
plenitude do acesso à informação, têm o mesmo sentido da quebra do sigilo
bancário para as investigações da lavagem de dinheiro escuso.
Importante salientar a relação entre os períodos históricos de desenvolvimento
da agricultura e a realização dos censos agropecuários e o quanto a sua ausência
custou para a compreensão da realidade nacional. Tome-se o censo agropecuário de
1960, realizado no final da implementação do Plano de Metas de Juscelino
Kubitschek. Pode-se defini-lo como ponto de partida na análise das mudanças
estruturais da agricultura brasileira, conformando-se como retrato da realidade
anterior à fase mais profunda de modernização da agropecuária.
Esta foi impulsionada não apenas pelas mudanças estruturais e fiscais da metade
dos anos 60, mas, principalmente, pela estruturação do crédito rural subsidiado
que data do mesmo período, o qual permitiu a incorporação crescente de insumos e
máquinas, além da inserção da agropecuária na lógica do sistema financeiro, bem
como, no seu lado de crédito agroindustrial, deu sustentação à agregação de
valor ao produto setorial pelo financiamento da expansão agroindustrial.
O impacto das mudanças pode ser verificado a partir do censo agropecuário de
1970, ainda que a inexistência de censo agropecuário em 1965 faça surgir
dificuldades na definição do ritmo inicial dessas transformações. As políticas
públicas de modernização setorial estão datadas da segunda metade dos anos 60, e
a não-disponibilidade de dados censitários para a agropecuária em 1965 impede a
comprovação empírica do tamanho dos efeitos estruturais da crise econômica e
setorial da primeira metade da década. Se realizado, o marco na periodização da
evolução histórica da agricultura brasileira poderia ser 1965, e não 1960 ou
1970, mas para isso não há como suprir a falta de bom censo.
A década de 70 e a primeira metade dos anos 80 representaram a consolidação da
transformação estrutural resultante da generalização do padrão da Segunda
Revolução Industrial determinado na industrialização da agricultura. Essa fase
da economia agrária brasileira pode ser analisada nos seus diversos aspectos,
pois está documentada e retratada de forma conveniente nos censos agropecuários
de 1970, 1975, 1980 e 1985.
Contraditoriamente, desde que ocorreu o processo de democratização, quando se
deveria esperar maior compromisso com a democratização das informações,
simplesmente não há disponibilidade de dados censitários consistentes. O censo
agropecuário de 1995, na verdade realizado entre agosto de 1995 e julho de
1996², apresenta discrepâncias que impedem tomar suas informações para análises
estruturais absolutamente relevantes, como o cálculo do produto interno bruto
(PIB) setorial que tem como lastro informações do censo agropecuário de 1985.
Um enorme conjunto de políticas públicas está submetido a evidências empíricas
de uma realidade que não existe mais. Muitos dos pressupostos podem mesmo estar
completamente ultrapassados, como a participação dos diferentes perfis de
produtores na produção das diversas culturas, a localização espacial das
lavouras e criações, as mudanças na estrutura agrária tanto nas regiões de
ocupação recente quanto nos efeitos sobre a mesma nas regiões de ocupação
antiga.
No debate sobre o desenvolvimento dos agronegócios brasileiros, um significativo
rol de pressupostos, por vezes antagônicos, é propalado sem que se possa
oferecer reflexão consistente porque lastreada em evidências empíricas. O
principal deles consiste na profundidade da mudança estrutural operada desde os
anos 80, que compreende mudança do lócus espacial de segmentos importantes como
grãos e fibras, com o avanço da fronteira de expansão para o cerrado, a amazônia
e faixas do nordeste como o oeste da Bahia e o sul do Maranhão.
O simples enumerar dos fatos que marcam as transformações da agropecuária
brasileira, desde a metade dos anos 80, mostra como os coeficientes estruturais
desse setor devem estar distantes daqueles consignados no censo agropecuário de
1985.
O superávit da balança comercial e a seqüência de supersafras, que engrandecem
os agronegócios, não sensibilizaram os tomadores de decisão para que ao menos
isso fosse registrado para a história num retrato fiel de sua pujança
estrutural. Por que, talvez, se haveria de enfrentar mais uma vez o aprofundar
das mazelas sociais?
De qualquer maneira, o Brasil agrário não se reconhece mais na última fotografia
oficial. A solidificação da democracia exige que a sociedade conheça a si mesma
e reconheça a si própria em retratos estruturais de seu principal setor
econômico, os agronegócios, firmados nos censos agropecuários.
Nada justifica a falta de bom censo, nem mesmo a falta de bom senso em postergá-lo em prol da meta de superávit primário, dado que nada é mais primário que insistir em navegar em águas turvas sem radar adequado. Sem esse radar estrutural, os agronegócios brasileiros podem transformar-se num Titanic, engendrando movimentos cegos até encontrar algum iceberg. E o capitão e sua tripulação não têm como
planejar rota segura para seu curso histórico.
Data de Publicação: 08/12/2004
Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor