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Circuitos Curtos de Comercialização: organização social, pesquisa e extensão rural nas Feiras do Produtor Rural em Peruíbe, Estado de São Paulo
No final de outubro de 2021, a
pesquisa e a assistência técnica e extensão rural (ATER)
representados, respectivamente, por servidores de duas instituições da
Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, o Instituto
de Economia Agrícola (IEA) e a Coordenaria de Assistência Técnica Integral
(CATI), atual Coordenadoria do Desenvolvimento Rural Sustentável (CDRS),
visitaram as duas Feiras do Produtor Rural de Peruíbe, Estado de São Paulo
(Figura 1). O intuito da visita técnica foi prospectar o horizonte dos
circuitos curtos de comercialização no município localizado na microrregião de
Itanhaém, região metropolitana da Baixada Santista. Neste artigo, destacamos os méritos do “trabalho de
campo” como fundamentação empírica para subsidiar as atividades da pesquisa
científica e as práticas em assistência técnica e extensão rural. A partir da
revisão bibliográfica e relatos de agricultores e técnicos do poder público,
apresentamos considerações acerca da realidade local. O objetivo do estudo é levantar dados e informações em municípios de São Paulo para o projeto Agroecologia e
circuitos curtos de comercialização no estado de São Paulo: renda, segurança
alimentar e desenvolvimento local. O trabalho
investiga as potencialidades e fragilidades das vendas diretas do produtor
ao consumidor, com interesse especial aos alimentos orgânicos e agroecológicos1.
Na realização da pesquisa científica, os
trabalhos de campo são o alicerce a confrontar teorias e aprofundar a análise
crítica das dinâmicas da sociedade. A coleta de informações primárias se
orienta por procedimentos científicos iniciados antes da ida ao campo com a
revisão bibliográfica e a elaboração criteriosa de roteiros para entrevistas. Autores como Kaiser2, Serpa3
e, também, Alentejano e Rocha-Leão4 observam que o “trabalho de
campo não deve se reduzir ao mundo do empírico, mas ser um momento de
articulação teoria-prática”5. Aos cientistas geógrafos e agrônomos,
as bases teórico- -metodológicas de
investigação e da produção do conhecimento são constituídas pelo recorte
temático e espacial, de conceitos, teoria e método articulados com o
planejamento e a realização da viagem para estudo. A incursão ao
campo é parte integrante do trabalho científico e constitui-se, especialmente,
na rotina dos profissionais de ATER. A maior interação dos técnicos com
agricultoras e agricultores locais permite esclarecer dúvidas de ambas as
partes e atender imediatamente a diversas demandas que são destinadas ao poder
público. Nessa visita, abordaram-se as técnicas de produção, políticas
públicas, certificação, comercialização e turismo rural. TEORIA E PRÁTICA PARA COMPREENSÃO DO ACESSO AOS ALIMENTOS Da
necessidade de um método de investigação que ajude a explicar a realidade, sob
uma perspectiva geográfica e histórica, indicamos os conceitos que guiam este
estudo. Partimos da abordagem da pesquisa-participante6 e da
teoria geográfica miltoniana7. Ambos os referenciais teóricos
consideram a existência como uma totalidade em constante transformação.
Sinalizam para a importância de apreendermos o conjunto, as relações e os
processos no intuito de desvendar a dinâmica social. A manifestação espacial da
realidade é o “território usado”, conceito
sinônimo de espaço geográfico. Nas palavras de Milton Santos: “O espaço é a síntese, sempre provisória,
entre o conteúdo social e as formas espaciais”8. Trata-se de
um conjunto indissociável que reúne um sistema de objetos e um sistema de ações.
Há múltiplos fenômenos interdependentes que abrangem a materialidade (Natureza e os
objetos artificiais) e as ações políticas
advindas das relações, cooperações ou disputas entre Estado, empresas e
sociedade civil. Em cenário social
agravado por razões políticas, econômicas e epidemiológicas com o aumento do
número de pessoas em estado de insegurança alimentar no Brasil, investigamos o uso do território do ponto de
vista da produção (oferta) e do acesso aos alimentos. A questão traz à reflexão
a concepção do direito humano à
alimentação adequada. A premissa do
direito humano à alimentação adequada está atrelada aos conceitos de comércio justo e solidário e de economia
solidária. Para Paul Singer9, a economia solidária é uma crítica ao modo de produção capitalista
centrado na competitividade, lucro e hierarquia. Em oposição, a economia
solidária se baseia na propriedade coletiva do capital, autogestão e na
melhoria das condições de vida de um Para traçar o
diagnóstico do acesso aos alimentos saudáveis, selecionamos como recorte
temático e espacial os canais de comercialização praticados pela agricultura
familiar. Portanto, outro conceito fundamental é
o de circuitos curtos de comercialização,
que diz respeito aos mercados de
proximidade geográfica (locais), com a inexistência ou o reduzido número de
intermediários, e onde há maior nível de inter-relação entre produtores e
consumidores10. Em geral, no comércio justo e solidário, as vendas
diretas convergem para o sistema técnico da produção familiar orgânica e
agroecológica. A noção de circuitos
curtos de comercialização facilita a compreensão dos mecanismos que
favorecem ampliar a área de produção e a oferta de alimentos frescos,
diversificados e de qualidade a consumidores cada vez mais conscientes. Nesta
visão estão as alternativas para a inserção dos agricultores familiares no
mercado e, também, os princípios para que um maior número de pessoas tenha
refeições regulares e saudáveis. Nos equipamentos
públicos destinados à comercialização direta há uma maior proximidade entre
produtor e consumidor. Tal fato sugere que os preços sejam mais favoráveis para
ambos, produtores e consumidores. Assim, após o contato com os servidores da
rede municipal e estadual que atuam na orientação técnica e de políticas
públicas em Peruíbe, elegemos as Feiras do Produtor Rural para compreender a
dinâmica dos circuitos curtos (Figura 2). ORGANIZAÇÃO SOCIAL E
USO AGRÍCOLA DO TERRITÓRIO EM PERUÍBE Em 2021, estima-se que
há em Peruíbe 69.697 habitantes11, em área de 326 km². Nos fins de
semana e nas férias, a chegada de turistas eleva consideravelmente esta
população e, consequentemente, o potencial de demanda por alimentos, cuja
produção é oriunda dos coletivos e redes de economia solidária da região da Baixada
Santista12. Em Peruíbe, há áreas destinadas à preservação ambiental da Mata
Atlântica, pertencentes ao Parque Estadual da Serra do Mar, e o uso agrícola do
território se depara com fatores limitantes em razão da configuração do
território e de aspectos legais. Entre as restrições para o cultivo de
alimentos estão as características de clima, solo e relevo litorâneos e,
principalmente, as pressões do processo de especulação imobiliária que acirram
as disputas pelo tipo de uso do solo na região. Contudo, há uma produção
agrícola local valorosa e que contribui sobremaneira ao abastecimento
alimentar. Segundo o Levantamento de Unidades de Produção
Agropecuária (LUPA)13, a atividade agropecuária em Peruíbe ocupa área de
5.784 ha com 180 imóveis rurais que são, predominantemente, de pequeno porte
(80% do total). Destacam-se os cultivos da banana, jaca, mexerica, goiaba,
milho, feijão, tubérculos, mandio- ca, hortaliças, palmito pupunha,
além de apicultura, piscicultura, avicultura, suinocultura, equinocultura,
pecuária mista, produtos processados artesanalmente, turismo rural e de base
comunitária (Figura 3). A
questão fundiária e do acesso à terra é um dos desafios mais urgentes no país.
Em Peruíbe, cerca de 400 outras propriedades rurais não possuem a titularidade
regular da terra e, consequentemente, esses agricultores não têm acesso às
políticas públicas14, ficando alheios a estes benefícios
(Figura 4). As Feiras do Produtor Rural e da economia
solidaria de Peruíbe acontecem às terças e quartas-feiras com a oferta de
alimentos orgânicos e agroecológicos in
natura, e produtos alimentícios artesanais como biscoitos, doces, geleias,
pães, entre outros. Há também a venda de plantas alimentícias não convencionais
(PANCs), e de mudas de plantas medicinais e ornamentais. No mesmo espaço são
comercializados brinquedos e artigos para higiene, vestuário e beleza, com
itens confeccionados pela população local com bordados, crochê, fuxico, tricô,
bonecas de tecido, bolsas, toalhas, caixas decorativas, bijuterias e sabão
artesanais (Figuras 5 a 8). A variedade de mercadorias nas feiras resulta da organização da
população local em coletivos e redes de economia solidária, e que têm nos conselhos
municipais o suporte para a articulação, acesso a informações, e o trabalho de
organização dos grupos. Nos circuitos curtos de comercialização praticados em
Peruíbe, encontram-se organizações como o Morro das Panelas (Figura 9), a
Associação Cultural Afefe Odara Omi Aye Didá, a União das Mulheres Agricultoras
(UMA) e a União das Mulheres Produtoras da Economia Solidária de Peruíbe
(UMPES). As
ações, os projetos e programas empreendidos em Peruíbe, tendo sempre presente
os responsáveis pelo trabalho de ATER junto aos circuitos curtos de produção,
comercialização e economia solidária, têm culminado em resultados concretos no
apoio a organização de grupos formais, associações e cooperativas
autogestionários para o acesso a políticas públicas, como o Programa Nacional
de Alimentação Escolar (PNAE) e do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura
Familiar, modalidade doação simultânea, tanto realizado diretamente pelo
município (prefeitura ou organizações de agricultores), quanto o executado no
ano de 2021, intitulado no estado de São Paulo como PAA Cesta Verde, oriundo de
parceria dos governos federal (Ministério da Cidadania) e estadual. Por outro lado, os grupos
informais, ainda que não acessem as políticas públicas, têm criado importantes
vínculos sociais com a clientela das feiras. A partir do respeito,
confiança, cooperação e compromisso garantem as boas relações entre os
produtores e consumidores locais. Estes sentem-se seguros em adquirir os
produtos pois sabem quem, como e onde os alimentos são produzidos, gerando
estreitamento das relações interpessoais de amizade e fidelidade. Durante a visitação, seguindo a concepção da pesquisa-participante, procurou-se estabelecer diálogos
envolvendo a troca de saberes que estimulassem o aprendizado mútuo partilhado
entre entrevistadores e entrevistados. Os agricultores demonstraram grande
satisfação com o trabalho no sistema técnico orgânico e agroecológico, e também
no contato direto com a clientela em vendas diretas seja na feira, direto na
propriedade ou ainda por meio de entregas oriundas dos grupos de consumo. Um caso ilustrativo dos fortes vínculos que se
estabelecem entre os agricultores e os consumidores dos circuitos curtos de
comercialização está no depoimento de Maria José (Figura 2). A agricultora
feirante descreve as relações de proximidade e fidelidade com a freguesia, que
é chamada por ela de “nossos amigos”. A produção do casal Maria e João não tem certificação da produção
orgânica. Contudo, a clientela deposita confiança na qualidade dos inúmeros
itens, como as hortaliças e legumes produzidos sem a aplicação de agrotóxicos.
A agricultora destaca, também, o aprendizado para o trabalho nas feiras como
resultado de vivências anteriores e do curso de nove meses oferecido em
parceria entre a prefeitura e o SENAR. Ao longo dos diálogos nas duas feiras, foram apontados alguns
desafios que se colocam aos governos municipal e estadual, a respeito: ·
Da precariedade das estradas rurais; ·
Das dificuldades no transporte público ligando à zona rural e
urbana; ·
Do alto custo do frete para o transporte particular, ·
Da ausência de conectividade no campo que impede as vendas na
internet; ·
Da escassez de mão de obra eventual para o apoio no trabalho rural; ·
Da facilitação e apoio da oferta de crédito, visando à compra de
insumos (compostagem), equipamentos agrícolas, veículos para logística no
transporte da produção e a aquisição de imóvel rural; e ·
Da instalação de galpão para a organização da logística da
comercialização-recebimento da produção para a distribuição de cestas. A agricultora Brígida
de Souza Ferreira, da Associação Cultural Afefe Odara Omi Aye Didá, destaca também a importância de incentivar o trabalho
coletivo e as atividades de promoção da alimentação saudável, a partir do
aprendizado no plantio de legumes e verduras orgânicos, de cursos
de culinária, do uso de plantas
alimentícias não convencionais (PANCs) e da reciclagem de resíduos. Como
destaca Brígida, essas são algumas das ações do projeto Batuque na Cozinha. O trabalho de campo permitiu uma sondagem inicial sobre os
circuitos curtos de comercialização em Peruíbe. As conversas informais, bem
como o teste piloto com as entrevistas guiadas pelo roteiro semiestruturado,
trazem importantes indicativos da relevância social e econômica das formas praticadas
de comercialização, associando a economia solidária aos circuitos curtos. Para
os próximos passos, pretende-se aprofundar a análise com um diagnóstico sobre
os desdobramentos sociais e econômicos dos circuitos curtos de comercialização.
A ideia é subsidiar a elaboração e/ou aperfeiçoamento de políticas públicas
destinadas a produção sustentável, promoção e acesso a uma alimentação
saudável, geração de renda e desenvolvimento territorial. 1A
pesquisa Agroecologia e circuitos curtos de comercialização
no estado de São Paulo: renda, segurança alimentar e desenvolvimento local está
cadastrada sob número SGP 2429 no
sistema de gestão da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (APTA). 2KAISER, B. O
geógrafo e a pesquisa de campo. Boletim
Paulista de Geografia, São Paulo, n. 84, p. 93-104, 2006. Disponível em:
http://www.uel.br/cce/geo/didatico/omar/pesquisa_geografia_fisica/BPG84_Pesquisa.pdf.
Acesso em: 30 out. 2021. 3SERPA, A. O
trabalho de campo em geografia: uma abordagem teórico-metodológica. Boletim Paulista de Geografia, São
Paulo, n. 84, p. 7-24, 2006. Disponível em:
http://www.uel.br/cce/geo/didatico/omar/pesquisa_geografia_fisica/BPG84_Pesquisa.pdf.
Acesso em: 30 out. 2021. 4ALENTEJANO, P. R.
R.; ROCHA-LEÃO, O. M. Trabalho de campo: uma ferramenta essencial, para os
geógrafos ou um instrumento banalizado? Boletim
Paulista De Geografia, São Paulo, n. 84, p. 51-68, 2006. Disponível em:
http://www.uel.br/cce/geo/didatico/omar/pesquisa_geografia_fisica/BPG84_Pesquisa.pdf.
Acesso em: 30 out. 2021. 5Op. cit. nota 4. 6BRANDÃO, C. R.;
BORGES, M. C. A pesquisa participante: um momento de educação popular. Revista de Educação Popular,
Uberlândia, v. 6, n. 1, p. 51-62, jan./dez. 2007. 7SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo,
razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996. 8Op. cit. nota 7. 9SINGER, P. Introdução à economia solidária. São
Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2002. 10DAROLT, M. R. Conexão ecológica: novas relações entre
agricultores e consumidores. Londrina: IAPAR, 2012. 11PERUÍBE. IBGE Cidades, Rio de Janeiro, [2021]. Disponível em
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/peruibe/panorama. Acesso em: 8 nov. 2021. 12NASSER,
J. T.; CALGARO, H. F. Transição solidária: uma realidade em movimento. In: CONGRESSO DE PESQUISADORES DE
ECONOMIA SOLIDÁRIA, 3., 2021, São Paulo. Anais
[...]. São Paulo: ABPES, 2021. Disponível em: https://abpes.org. Acesso em:
4 nov. 2021. 13
SÃO
PAULO (Estado). Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São
Paulo. Instituto de Economia Agrícola. Coordenadoria de Desenvolvimento Rural
Sustentável. Projeto LUPA 2019:
Censo Agropecuário do Estado de São Paulo. São Paulo: SAA: IEA: CDRS.
Disponível em https://www.cdrs.sp.gov.br/projetolupa/. Acesso em: 8
nov. 2021. 14CALGARO, H. F.;
NASSER, J. T.; VILLELA, L. G. V. A atuação da ATER nos circuitos curtos de
comercialização e na economia solidária do município de Peruíbe. In: SANTOS, A. F. et al. (org.). Política
pública de assistência técnica e extensão rural: avanços e desafios para a
construção do desenvolvimento rural sustentável. João Pessoa: Mídia Gráfica e
Editora, 2021. p. 14-35. Palavras-chave:
agricultura familiar, comercialização, sistema de produção orgânica e
agroecológica. COMO
CITAR ESTE ARTIGO
RAMOS,
S. de F.; CALGARO, H. F. Circuitos Curtos de Comercialização: organização
social, pesquisa e extensão rural nas Feiras do Produtor Rural em Peruíbe,
Estado de São Paulo. Análises e Indicadores do Agronegócio, São Paulo,
v. 16, n. 12, p. 1-11, dez. 2021. Disponível em: colocar o link do
artigo. Acesso em: dd mmm. aaaa.
modo igualitário na sociedade. A alimentação é uma das dimensões cruciais a serem
analisadas.
Data de Publicação: 29/12/2021
Autor(es):
Soraia de Fátima Ramos (sframos@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Hemerson Fernandes Calgaro (hemerson.calgaro@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor