El Niño 2002-03 E A Anomalia Climática

            O El Niño é um fenômeno climático relacionado ao aquecimento anormal das águas superficiais do Oceano Pacífico Equatorial, sendo uma das fases do El Niño-Oscilação Sul (ENOS). No Peru, arquivos de documentos dos primeiros colonizadores confirmam que seus impactos (inundação, distúrbio na vida marinha, etc.) eram conhecidos no tempo em que o primeiro conquistador, Pizzaro, colocou ali os pés em 1525. Segundo os indicadores paleoclimáticos, como evidências geológicas e anéis de crescimento das árvores, esse evento vem ocorrendo por milhares de anos e provavelmente tanto quanto ocorreu no século XX (ENFIELD & ENFIELD, 2002).
            Também foram achadas evidências geológicas de ocorrências em comunidades peruanas costeiras de pelo menos 13.000 anos atrás. Os Incas, que tinham conhecimentos sobre o El Niño, construíam suas cidades nos topos de colinas e a população mantinha estoques de comida nas montanhas; se as construíam na região costeira, não era perto de rios. Mas apenas há cerca de 25 anos o resto do mundo começou a prestar atenção nesse fenômeno, após a devastação causada em 1982-83, intensificando esforços para entender como o processo ocorre globalmente.
            O El Niño 1997-98 foi marcado, pela primeira vez na história humana, como a ocorrência em que os cientistas de clima puderam predizer com antecedência épocas de inundação anormal e meses de secas, permitindo que populações ameaçadas se preparassem a tempo (SUPLEE, 2002).
            Em condições normais, os ventos alísios sopram para o oeste através do Pacífico Equatorial. Estes ventos empilham para cima água de superfície morna no Pacífico ocidental, de forma que a superfície do mar seja aproximadamente meio metro mais alta na Indonésia do que no Equador. Durante a ocorrência do El Niño, os ventos relaxam no Pacífico central e ocidental e a temperatura da superfície do mar fica aproximadamente 8 graus Celsius mais alta na região oeste. Basicamente, ocorrem três sinais típicos:

1. As temperaturas da superfície do mar no Oceano Pacífico, na altura do Peru, elevam-se dramaticamente, alterando a circulação da atmosfera e acarretando a formação de nuvens causadoras de chuva e a redução da velocidade dos ventos que normalmente sopram para oeste.
2. As correntes de ar no Pacífico Sul deixam de fluir de leste a oeste e ficam mais estagnadas, ocasionalmente fluindo de oeste para leste. As nuvens carregadas de chuva seguem a água morna em direção leste. Como conseqüência, ocorrem inundação no Peru e seca na Indonésia e Austrália. A mudança na atmosfera em cima do Oceano Pacífico muda padrões de clima globais, com mudanças dramáticas no mundo inteiro, não só nas áreas perto do Pacífico tropical.
3. No mar aberto, a água na zona iluminada pelo sol tem uma temperatura mais alta do que a da água profunda. Em condições normais, o processo de ressurgência traz água mais fria para o topo, trazendo junto nutrientes ricos. Nos anos de El Niño, as temperaturas da água elevam-se no Pacífico, servindo como uma capa que impede a chegada desses nutrientes ricos para a zona iluminada pelo sol, habitada pela maioria das vidas marinhas (que morrem), afetando portanto a cadeia alimentar e pescas comerciais (EL NIÑO, 2002a; EL NIÑO, 2002b; INFORMAÇÕES, 2002).

            Dois indicadores são os mais utilizados para medir a ocorrência e a intensidade do El Niño: Índice de Oscilação Sul (IOS ou SOI) e Anomalia de Temperatura da Superfície do Mar (SSTA). A Oscilação Sul (OS) caracteriza-se por uma 'gangorra barométrica' de grande escala observada sobre a Bacia do Pacífico Tropical. Walker e Bliss (1932, 1937), citado por INFORMAÇÕES (2002), definiram a OS como uma flutuação inversa verificada na pressão ao nível do mar nas estações de Darwin (12.4S - 130.9E) localizada no norte da Austrália e Tahiti (17.5S - 149.6W) situada no Oceano Pacífico Sul. A diferença entre as pressões normalizadas (em desvio padrão) nas estações de Tahiti e Darwin é definida como o Índice de Oscilação Sul (IOS). Este índice é geralmente negativo nos anos de El Niño e positivo nos anos de La Niña, tendo dados disponíveis para mais de um século, KESSLER (2002) (figura 1).

Figura 1 – Índice de Oscilação Sul (IOS), 1876-1998

Fonte: KESSLER (2002).

            A anomalia de temperatura é a diferença de temperatura em relação à média histórica. A mensuração ocorre em regiões denominadas de Niño (ou Nino) no Pacífico Equatorial, quais sejam, Niño 1+2 (0-10S, 90-80W), Niño 3 (5N-5S, 150-90W), Niño 4 (5N-5S, 160E-150W) e Niño 3.4 (5N-5S, 170-120W), esta última abrangendo partes de Niño 3 e 4, conforme figura 2, INFORMAÇÕES (2002). A anomalia de temperatura é uma variável mais fácil de ser compreendida pelos leigos, mas a disponibilidade de dados históricos é bem menor que o de IOS.

Figura 2 – As Regiões de Niño

                          Fonte: INFORMAÇÕES (2002).

            As predições sobre o El Niño 1997-98 permitiram, pela primeira vez, que as populações ameaçadas se preparassem a tempo. A Administração Nacional Norte-americana de Oceano e Atmosfera (NOAA) anunciou primeiro um possível El Niño já em abril de 1997, seguida por Austrália e Japão. Isso ajudou aos agricultores e pescadores do Peru a ter um melhor aproveitamento dos efeitos: a pastagem foi cultivada em terra que é normalmente estéril e os fazendeiros criaram gado; arroz e feijão puderam ser plantados em áreas normalmente muito secas para o cultivo; e os pescadores puderam planejar a pesca do camarão em águas litorais, geralmente muito frias para o molusco, SUPLEE (2002).
            Em julho de 2002, a NOAA anunciou oficialmente o retorno do El Niño (GILLIS, 2002). Qual será o seu comportamento e quais serão seus efeitos esperados sobre o clima? Os efeitos já conhecidos, em termos globais, durante o inverno e o verão do Hemisfério Sul podem ser vistos na figura 3: de junho a agosto, chuvoso no sul do Brasil e mais quente na região Sudeste a Nordeste; de dezembro a fevereiro, chuvoso na região Sul, quente no Sudeste e seco no Nordeste. Em ambas as estações, uma grande área cobrindo a Indonésia e o norte da Austrália é mais seca, enquanto que numa grande área na linha do Equador chove muito sobre o Oceano Pacífico (CENTRO, 2001). Portanto, nos anos de El Niño os efeitos típicos são a falta ou o excesso de chuvas em diversas regiões, temperaturas mais elevadas na maior parte do globo ou temperatura mais baixa na parte sul dos Estados Unidos.

Figura 3 – Efeitos Conhecidos do Fenômeno El Niño

                        Fonte: CENTRO, 2001.

            O Climate Prediction Center, que acompanha e analisa permanentemente o El Niño-Oscilação Sul, divulga mensalmente o diagnóstico e a previsão da evolução do ENOS através de seu site. O último boletim, de novembro, mostra uma grande área no Pacífico Equatorial com temperaturas superficiais entre 29 e 30 graus C e anomalias de até 2 a 3 graus, conforme a figura 4 (CLIMATE, 2002a). Está prevista a continuidade de SSTA positivo, principalmente nas regiões de Nino 4, Nino 3.4 e Nino 3 e de SOI negativo em 2003, sinais que estão dentro do padrão de evolução do El Niño, de acordo com a figura 5 (CLIMATE, 2002b).

Figura 4 – Temperatura e Anomalia de Temperatura da Superfície do Mar, Out./2002

              Fonte: CLIMATE, 2002a.

Figura 5 – Previsão da Evolução dos Índices de Anomalia de Temperatura
Superficial e de Oscilação Sul, 2003-2004

                                              Fonte: CLIMATE, 2002b.

            De agosto a outubro de 2002, a anomalia de precipitação ocorrida no território brasileiro foi de excesso de chuvas entre 75 a 150 mm no Sul e falta de chuvas entre 75 a 150 mm na pequena mancha da Bahia e parte da região Norte. Em termos globais, destaca-se a anomalia de chuvas de até 400 mm a menos sobre a Indonésia e América Central, excesso de precipitação de até 600 mm a mais sobre o Pacífico ao lado direito da Indonésia, na figura 6 (CLIMATE, 2002c)

Figura 6 – Anomalia de Precipitação Pluviométrica, Agosto a Outubro de 2002

                Fonte: CLIMATE, 2002c.

            No último boletim de diagnóstico, o Climate Prediction Center fornece os seguintes impactos globais: 1) seca acima da média histórica na Indonésia e no leste da Austrália continuando nos próximos meses; 2) chuvas acima da média histórica no sudeste da América do Sul (Uruguai, nordeste da Argentina, e sul do Brasil) no decorrer do final de 2002; 3) seca acima da média histórica no sudeste da África durante dezembro de 2002 a fevereiro de 2003; 4) seca acima da média histórica no Nordeste do Brasil e norte da América do Sul durante dezembro de 2002 a abril de 2003; e 5) chuvas acima da média histórica na costa do Equador e norte do Peru durante dezembro de 2002 a abril de 2003, (CLIMATE, 2002d). E prevê que, baseado nas condições oceânicas e atmosféricas observadas e as previsões de temperatura da superfície do mar, o El Niño deve continuar na primavera (do Hemisfério Norte) de 2003, (CLIMATE, 2002e).
            Os usos potenciais de informação antecipada do fenômeno climático são quase ilimitados. Por exemplo, os produtores de café do Quênia recebem maior demanda pelos seus produtos quando as secas afetam colheitas de café no Brasil e na Indonésia. A produção de óleo de palma nas Filipinas declina normalmente durante o El Niño, assim como a captura de lula na costa da Califórnia. Países que se antecipam à evolução do evento podem beneficiar-se desse conhecimento, ou ao menos salvar vidas construindo drenos ou armazenando suprimentos de emergência, como ocorreu no Peru em 1997-98 (SUPLEE, 2002).
            Em relação ao mercado de feijão, o setor pode enfrentar problemas de excesso de chuvas nos meses de dezembro a janeiro no sul do país, principalmente no Estado do Rio Grande do Sul, e em menor grau no Estado de São Paulo, durante colheita da primeira safra (feijão das águas). Na região nordeste, o desenvolvimento da primeira safra de feijão pode ser comprometido pela estiagem, em menor grau, mas acima de tudo pode afetar seriamente o plantio da segunda safra, dada a previsão da Climate Prediction Center da possibilidade de ocorrência da severa estiagem na região, de dezembro de 2002 a abril de 2003. Assim, o acompanhamento em tempo real da evolução do El Niño 2002-2003 é fundamental para que todo o potencial proveniente do conhecimento seja otimizado, tanto para minimizar prejuízos como para maximizar os lucros nas atividades econômicas e sociais.

Literatura Citada

CENTRO DE PREVISÃO DE TEMPO E ESTUDOS CLIMÁTICOS (CPTEC). INSTITUTO NACIONAL DE PESQUISAS ESPACIAIS (INPE). Efeitos conhecidos do El Niño. Disponível em: http://cptec.inpe.br/products/elninho/efeitos.gif. Acesso em: 10 abr. 2001.

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EL NIÑO: What is El Niño?. Disponível em: http://mbgnet.mobot.org/salt/el-nino/index.htm. Acesso em: 25 nov. 2002b.

ENFIELD, David B.; ENFIELD, D. Michael. The 'El Niño' FAQ: Frequently Asked Questions About El Niño-Southern Oscillation (ENSO). Disponível em: http://www.aoml.noaa.gov/general/enso_faq/. Acesso em: 16 maio 2002.

GILLIS, Carmeyia. El Niño Makes Its Official Return. Disponível em: http://www.noaanews.noaa.gov/stories/s938.htm. Acesso em: 19 nov. 2002.

INFORMAÇÕES Técnicas sobre El Niño. Disponível em: http://www.funceme.br/beta/funceme/demet/nino.htm. Acesso em: 25 nov. 2002.

KESSLER, William, S. Southern Oscillation Index. Disponível em: http://www.pmel.noaa.gov/~kessler/ENSO/soi-1876-1998.gif . Acesso em: 26 nov. 2002.

MEISNER, Bernard N. National Weather Service Southern Region: El Niño. Disponível em: http://www.srh.noaa.gov/ftproot/ssd/elnino/html/ninofaqs.htm#Southern. Acesso em: 26 nov. 2002.

SUPLEE, Curt. El Niño/La Niña: Nature’s Vicious Cycle. Disponível em: http://www.nationalgeographic.com/elnino/mainpage2.html. Acesso em: 21 nov. 2002.

 

Data de Publicação: 01/12/2002

Autor(es): Ikuyo Kiyuna Consulte outros textos deste autor