Transformações Recentes da Agricultura Orgânica em São Paulo

            A produção de alimentos orgânicos mostra uma complexa dinâmica de relações, com redes de interações não apenas entre diferentes segmentos, como também dentro dos segmentos, o que configura o setor como um sistema-rede2. A importância de identificar diferentes tipos de interdependências e formas de cooperação, que se traduzem nas inter-relações verticais e horizontais, decorre de sua associação a fontes potenciais tanto de geração de valor econômico, quanto de formas específicas de estruturas de governança facilitadoras da criação e apropriação desse valor. Um esquema genérico do sistema-rede de produtos orgânicos pode ser observado na figura 1.

            Este trabalho tem por objetivo traçar um rápido panorama da agricultura orgânica na última década (2002-2012), levantando alguns antecedentes com questões que estimulem o debate sobre o desenvolvimento dos diversos segmentos ligados a essa forma de produção no Estado de São Paulo.

            O ponto de partida é o Estudo do Sistema Agroindustrial de ProdutosOrgânicos no Estado de São Paulo, realizado em 2002 pelo Programa de Estudos dos Negócios do Sistema Agroindustrial (PENSA), Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (FIPE) e Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de São Paulo (SEBRAE)3. O estudo considera a cadeia produtiva de produtos orgânicos como um sistema-rede, nos quais o reconhecimento das inter-relações verticais (entre segmentos), e horizontais (dentro dos segmentos), pode gerar externalidades capazes de estimular e/ou prejudicar a competitividade dos atores em diferentes segmentos do sistema.

        Seguem aqui suas principais conclusões. Os resultados da pesquisa indicaram oito pontos importantes que na época dificultavam o desenvolvimento da agricultura orgânica paulista:
 

  • Necessidade de uma política de educação e divulgação sobre a agricultura orgânica, com a implantação de um trabalho educativo que mostre sua importância como instrumento de sustentabilidade;
  • Geração de estatísticas confiáveis para o setor;
  • Obtenção de crédito compatível com a atividade;
  • Políticas voltadas para apoiar a conversão de sistemas de produção convencionais para orgânicos, já que é o produtor quem arca com todos os riscos;
  • Elaboração de um projeto para quantificar as externalidades positivas da agricultura orgânica em comparação com as externalidades negativas da agricultura convencional;
  • Necessidade de fortalecimento do ambiente institucional e do conjunto de regras que regulamentam a atividade;
  • Identificação de oportunistas, que podem estar presentes em qualquer elo do sistema-rede; e
  • Investimentos em pesquisa básica e avançada, assim como a criação de mecanismos de construção de conhecimentos.


        Algumas dificuldades da agricultura orgânica ainda parecem atuais, enquanto outras foram superadas de modo mais satisfatório. Novas organizações e empresas surgiram em diferentes segmentos da cadeia produtiva, mas outras empresas que pareciam promissoras na época, já não existem mais.

            Em 2012 foi realizada a Conferência Rio+20 sobre o meio ambiente, e a Federação Internacional de Movimentos de Agricultura Orgânica (IFOAM) comemorou 40 anos de sua fundação. Além disso, Ana Primavesi, aos 92 anos de idade, foi reconhecida mundialmente com o prêmio One World Award, oferecido pela empresa alemã Rapunzel pelo conjunto do trabalho de toda sua vida, o que representa um importante marco simbólico que destaca a agricultura orgânica brasileira no cenário internacional. Entretanto, consumir orgânicos no país ainda é ser "alternativo"4.

            Essa tendência, porém, parece estar mudando, na medida em que se observam alterações nos padrões de consumo. Alguns exemplos são o crescimento da gastronomia com base nos alimentos agroecológicos, fortalecimento de movimentos como slow food e de novos hábitos de consumidores preocupados com a saúde de suas famílias. Isso reflete até mesmo em cadeias de fast food, mas faltam muitas informações para os consumidores; por exemplo, grande parte deles ainda confunde produtos orgânicos com hidropônicos.

            Vale lembrar que em 2002, São Paulo ainda não conhecia as grandes feiras orgânicas como a Bio Fach América Latina e Bio Brazil Fair, nem havia uma oferta expressiva em feiras de rua, bancas em mercados municipais e espaços dedicados no varejo convencional. Passada uma década, além desses pontos, observa-se o crescimento do consumo de orgânicos em restaurantes, sejam os mais simples ou os com clima mais sofisticado.

            A capital paulista tampouco tinha folhetos de promoção de produtos orgânicos, veiculados por grande supermercado em jornais de ampla circulação. Atualmente, é oferecida uma gama de produtos muito difícil de obter dez anos atrás5, ainda mais com a conveniência de estarem todos disponíveis num mesmo local de compra. Além de alimentos, a variedade também pode incluir produtos de limpeza, cosméticos e roupas.

            Estimativas do BNDES com base em informações dos certificadores em 2000 indicavam que o mercado de orgânicos no Brasil girava em torno de US$220 milhões a US$300 milhões. Contava então com cerca de 7.000 produtores, dos quais 6.900 se dedicavam à agropecuária e 100 ao processamento. A área ocupada era de quase 270 mil hectares, sendo 117 mil hectares ocupados com pastagens e 153 mil hectares distribuídos entre diversas culturas6.

            Pela primeira vez em 2006 o Censo Agropecuário do IBGE inclui perguntas sobre agricultura orgânica. Os resultados indicaram 90.425 estabelecimentos agropecuários orgânicos, que equivalem a 1,8% do total de estabelecimentos no Brasil, ocupando cerca de 4,4 milhões de hectares7. Estavam distribuídos entre pecuária e criação de outros animais (42%), lavouras temporárias (34%), permanentes (10%), horticultura/floricultura (10%) e produção florestal (4%). Em São Paulo, eram 3,4 mil com agricultura orgânica, que representam 1,5% do número total de estabelecimentos agropecuários no Estado.

            Em 2011, o Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) divulgou informações referentes à agricultura orgânica. O Brasil contava com 1,55 milhão de hectares e 11.524 unidades certificadas8. São Paulo tinha 10,8 mil hectares ocupados com agricultura orgânica (0,7%) e 741 unidades certificadas (6,4%).

            Informações do Levantamento das Unidades de Produção Agropecuária (LUPA) realizado em 2007/2008, que não se referem propriamente à agricultura orgânica, registravam no Estado de São Paulo cerca de 85 mil UPAs que empregam adubos orgânicos, e 20 mil UPAs que usam adubos verdes quando necessário9.

            Quanto à articulação institucional, o Estado de São Paulo tem uma Comissão Técnica de Agricultura Ecológica (CTAE) desde 1992 e uma Câmara Setorial de Agricultura Ecológica (CSAE), constituída em 2000. A Comissão Técnica e a Câmara Setorial, junto com a Associação de Agricultura Orgânica (AAO) e, principalmente, a sociedade civil organizada em diferentes representações estruturou a Articulação Paulista de Agroecologia (APA), em meados desta última década. A Frente Parlamentar para Agricultura Orgânica e Agroecologia foi instituída na Assembleia Legislativa paulista no final de 2012, reunindo diferentes partidos políticos e entidades representativas de agricultores, extensionistas, pesquisadores, entre outros.

            O fornecimento de crédito para a atividade não se desenvolveu como o fortalecimento das organizações e da legislação federal. A agricultura orgânica encontra-se numa fase de transição para se adaptar às novas exigências legais. Porém, algumas iniciativas começam a se desenhar com o Programa Estadual de Agricultura Orgânica, lançado em março de 2013, que prevê a destinação de recursos do Fundo de Expansão do Agronegócio Paulista (FEAP) para apoiar a transição de agricultores para sistemas orgânicos de produção. Além disso, o Programa vem realizando cursos de capacitação dos técnicos e fornecimento de algumas sementes orgânicas como de arroz, entre outras.

            Em 2000 cerca de 15 certificadores atuavam no país. Já em 2012, o MAPA tinha apenas oito credenciados no Sistema Brasileiro de Avaliação de Conformidade Orgânica (SISORG). Entre os certificadores atuais, cinco são Organismos de Avaliação de Conformidade por Certificação (sistema por auditoria): Ecocert, IBD, IMO, INT e Tecpar, e três são Organismos Participativos de Avaliação de Conformidade Orgânica (sistema participativo): ABIO, ANC e Rede Ecovida.

            Esta mudança na lei federal, que reconhece os Sistemas Participativos de Garantia (SPGs)10, se destaca como ação inovadora no cenário internacional. O reconhecimento oficial da certificação participativa gerou novos modelos de controle da produção orgânica que são hoje referência mundial de controle de qualidade. O selo Produto Orgânico Brasil, que em 2002 não existia, hoje é obrigatório, tanto para aqueles que foram certificados por auditoria quanto pelo sistema participativo (Figura 2).

        Apesar de inúmeras dificuldades para implantação da legislação, como por exemplo a falta de regras para regularização de insumos, os avanços na lei conduziram ao Decreto n. 7.794, de 20 de agosto de 2012, que instituiu a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO). Seu objetivo é

integrar, articular e adequar políticas, programas e ações indutoras da transição agroecológica e da produção orgânica e de base agroecológica, contribuindo para o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida da população, por meio do uso sustentável dos recursos naturais e da oferta e consumo de alimentos saudáveis11.            Do lado da produção, que contraria fortes interesses comerciais da agricultura convencional, ainda há problemas na comercialização, pois são poucos os compradores, o que caracteriza um oligopólio. Além disso, os preços dos alimentos orgânicos até agora são mais altos para diversos itens, se comparados com os produtos convencionais, que não estão sujeitos a tantas regras como a obrigatoriedade de certificação, embalagens e outras fontes extras de custos.

            Também há lacunas no desenvolvimento técnico, que carece de fomento público e parcerias com ONGs que possam indicar a forma de construir o conhecimento necessário. Além disso, falta dar acessibilidade de informações ao consumidor, num momento em que não existem mais veículos da imprensa paulista de grande circulação12 que, mesmo timidamente, abriam espaço para divulgar a produção orgânica.

            Foram muitos os avanços observados na última década, como também são vários os entraves enfrentados pela agricultura orgânica paulista. O reconhecimento das inter--relações sistêmicas como geradora de ganhos competitivos é o primeiro passo para avançar essas questões. As dificuldades precisam ser amplamente discutidas, uma vez que as ações relacionadas ao setor podem gerar externalidades capazes de estimular e/ou prejudicar a competitividade dos atores em diferentes segmentos do sistema-rede de produtos orgânicos.
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1Texto elaborado a partir do workshop "Desafios da Agricultura Orgânica em São Paulo: o que limita o seu crescimento?", realizado no Instituto de Economia Agrícola (IEA) em outubro de 2012, por iniciativa do Centro de Inteligência em Orgânicos (CI Orgânicos) da Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), com apoio do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE) e da Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa do Agronegócio (FUNDEPAG). As autoras agradecem a colaboração de Maria Sylvia Saes, Renata Martins Sampaio e Malimiria Norico Otani.

2O conceito de sistema-rede (netchain) foi proposto por LAZZARINI, S. G.; CHADDAD, F. R.; COOK, M. L. Integrating supply chain and network analysis: the study of netchains.Journal of Chain and Network Science, Vol. 1, pp. 1-22, jun. 2001. (Wagening Academic Publishers). Para os autores, os segmentos de uma cadeia produtiva estão envoltos em uma dinâmica que depende não só das relações verticais entre seus segmentos, mas também de relações entre agentes que atuam no mesmo segmento.

3PROGRAMA DE ESTUDOS DOS NEGÓCIOS DO SISTEMA AGROINDUSTRIAL – PENSA. Estudo do sistema agroindustrial de produtos orgânicos no Estado de São Paulo. São Paulo: PENSA/FIPE/SEBRAE, fev. 2002. Disponível em: <http://pensa.org.br/wp-content/uploads/2011/10/Estudo_do_sistema_agroindustrial_de_produtos_orgânicos_de_SP_2002.pdf>. Acesso em: set. 2012.

4A chamada da reportagem que divulgava a inauguração recente de um supermercado orgânico em São Paulo foi "‘Naturebas’ orgânicos ganham sua Disneylândia".

5A variedade de produtos oferecidos vai desde achocolatados até sucos, frutas, mel, manteiga, pães, bolos e cafés, além de açúcar, linhaça, chá, torrada, óleo de girassol, azeite, vinagre, ovos, legumes e verduras, frescos e processados. Sem falar nos molhos, massas, flocos de aveia, salgadinhos, cookies, muffins, grissinis, pães de mel, geleia, chocolate, arroz integral, feijão, ervas e temperos, milho para pipoca, farinha de trigo, cerveja, queijos, iogurte, castanha-do-pará e de caju, açaí, uva passa, polpa de frutas, carnes e frangos.

6Frutas, cana-de-açúcar, palmito, café, soja, hortaliças e milho.

7INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Censo Agropecuário 2006. Rio de Janeiro: IBGE. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=
1464&id_pagina=1>. Acesso em: out. 2012.

8Com certificação no exterior foram cerca de 170 mil hectares e 380 unidades certificadas.

9LEVANTAMENTO CENSITÁRIO DAS UNIDADES DE PRODUÇÃO AGROPECUÁRIA DO ESTADO DE SÃO PAULO – LUPA. Dados consolidados do Estado de São Paulo 2007/2008. Disponível em: <http://www.cati.sp.gov.br/projetolupa/dadosestado.php>. Acesso em: set. 2012.

10Os Sistemas Participativos de Garantia (SPGs) são uma alternativa aos sistemas de certificação por auditoria.

11SÃO PAULO (Estado). Decreto n. 7.794 de 20 de agosto de 2012. Institui a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica. Planalto. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/decreto/d7794.htm>. Acesso em: ago. 2012.

12Agrofolha e Suplemento Agrícola. 
    

Palavras-chave: agricultura orgânica, evolução recente, São Paulo.

 

Data de Publicação: 21/06/2013

Autor(es): Maria Celia Martins De Souza (mcmsouza@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Soraia de Fátima Ramos (sframos@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Ana Victoria Vieira Martins Monteiro (ana.monteiro@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor