Brasil Expande a Cogeração de Energia a Partir de Resíduos Agropecuários

Diante da crescente demanda por energias renováveis, a biomassa se destaca devido à sua neutralidade em termos de balanço de carbono1 e à flexibilidade no provimento de energia em diferentes formas (líquida, gasosa e elétrica).

No entanto, a biomassa e os resíduos do seu processamento, se deixados livres, entram em processo de decomposição emitindo gases de efeito estufa e outras substâncias nocivas ao meio ambiente e à biosfera. Uma forma de se evitar esses efeitos é utilizar os subprodutos da agropecuária para produzir energia elétrica (bioeletricidade) no próprio local onde será consumida e, em caso de excesso de produção, ofertar o excedente gerado2 às redes convencionais de distribuição de energia.

Essa forma de geração de energia permite acesso à eletricidade sem necessidade das linhas de transmissão e dos sistemas de distribuição empregados pelo Sistema Interligado Nacional (SIN) e, por isso, é chamada de geração distribuída (ou descentralizada). Considerando que a energia é um insumo indispensável ao desenvolvimento de todas as sociedades, a geração de energia descentralizada constitui-se em um vetor de minimização das desigualdades sociais por possibilitar que comunidades isoladas, assentamentos de reforma agrária, agricultores e cooperativas não só obtenham sua própria energia, mas também possam agregar valor as suas atividades produtivas por meio de venda do excedente energético.

Este texto tem como objetivo comentar a evolução da geração de energia elétrica a partir da biomassa, com ênfase nos resíduos da agropecuária, no período estabelecido como marco legal do Protocolo de Kyoto (2005-2013).

No Brasil estão em operação 2.701 usinas de energia elétrica, das quais 70% são movidas pelas águas (hidrelétricas), 21% por combustíveis não renováveis e 8% por biomassa3. Embora ainda pouco expressiva, a geração de eletricidade a partir da biomassa cresceu 227%, no período 2005-2013, sendo que a madeira (biomassa primaria) contribui com 3,6% da atual capacidade instalada para geração de energia e os resíduos da agropecuária (biomassa residual) com 96,4% (Tabela 1).

Entre 2005 e 2013, o número de usinas que consomem madeira (biomassa primária) para produzir eletricidade praticamente dobrou e a capacidade instalada para geração de energia elétrica aumentou 89%. Mas, para que esses números não remetam erroneamente à ideia de desmatamento e, portanto, de insustentabilidade sob o ponto de vista ambiental, deve-se atentar a alguns aspectos estruturais do setor madeireiro.

 

Inicialmente, os polos de produção e de beneficiamento de madeira localizados nos Estados de Santa Catarina, Paraná e São Paulo trabalham com madeira plantada (reflorestadas), e somente os polos localizados no Pará, Mato Grosso e Rondônia utilizam a madeira nativa4. Tais Estados, principalmente Pará e Rondônia, têm maior dificuldade de acesso ao Sistema Nacional Integrado (eletricidade), aspecto que interliga o consumo de lenha a outros fins energéticos: cocção e iluminação.

No entanto, o consumo de lenha para fins residenciais declina quase que simultaneamente ao aumento do consumo por parte do setor industrial (Figura 1).

A produção brasileira de lenha decaiu 7% no período 2005-2011. Em média, cerca de 1,0% foi utilizada pelo setor madeireiro para geração própria de energia elétrica, 37% destinou-se para a produção de outro energético, o carvão vegetal, e 62% teve fins energéticos em outros setores econômicos5, dos quais o industrial respondeu por 45%, em que se destacaram os segmentos de cerâmica (32%), alimentos e bebidas (31%), e de papel e celulose (21%).

 

 Embora o número de empresas que utilizam a madeira para geração de energia elétrica tenha aumentado 97% no período 2005-2013, a capacidade média instalada para geração de eletricidade diminuiu 3,5%, passando de 8.732 kW para 8.427 kW. Portanto, o aumento no número de usinas movidas à lenha deve estar refletindo o crescimento econômico do setor madeireiro para provimento de segmentos industriais.

Para se ter uma ideia, observe-se “os bastidores” do terceiro principal segmento consumidor de lenha: as indústrias de “papel e celulose”. Estas, para obterem a polpa de celulose, dissolvem a lignina da madeira com soda cáustica. Esse processo químico gera um resíduo (lixívia) denominado “licor negro”. Segundo o CENBIO (2012)6, a queima dessa biomassa residual em caldeiras de recuperação química melhora o balanço de energia, reduz a contaminação e permite gerar até 80% do vapor (energia térmica) necessário na planta industrial.

O vapor gerado pela queima do licor negro pode ser direcionado às turbinas, produzindo eletricidade. A capacidade média instalada para geração de energia elétrica a partir do licor negro passou de 55.464 kW, em 2005, para 89.015 kW, em 2013, registrando um aumento de 60% no período.

 Verifica-se, com isso, um movimento inverso ao demonstrado para o setor madeireiro. Enquanto este aumentou sua participação na matriz elétrica brasileira por meio de acréscimo no número de estabelecimentos geradores, nas indústrias de papel e celulose as instalações já existentes passaram por um processo de ampliação - uma vez que no período 2005-2013 somente duas usinas entraram em funcionamento. Ora, considerando-se que quanto maior a produção maior a quantidade de resíduos gerados, fica fácil inferir que o aumento do licor negro para a geração de eletricidade reflete o crescimento econômico de um importante demandante de lenha, o segmento de papel e celulose.

Embora a participação do licor negro na composição da matriz elétrica brasileira tenha aumentado significativamente (87%) no período 2005-2013, esta foi a biomassa residual que menos evoluiu. Os destaques foram para a casca de arroz (467%) bagaço de cana (279%) e biogás (271%) (Tabela 1).

A casca de arroz vem sendo utilizada na cogeração de energia, principalmente em grandes beneficiadoras de arroz. Parte da casca é utilizada na geração de vapor (energia térmica), visando tanto a secagem dos grãos como a parboilização do arroz. No entanto, Mayer, Hoffmann e Ruppenthal (2006)7 demonstram que a geração de energia elétrica com turbina a vapor apresenta a melhor alternativa, pois pode suprir a demanda total do engenho com o menor custo, o que disponibiliza uma vantagem competitiva. Segundo os autores, a diminuição dos custos de produção por meio da geração própria de eletricidade, associada à possível comercialização de créditos de carbono, incrementa a viabilidade econômica em até 30%.

Desde 2003, a Itaipu Binacional, responsável pela maior usina hidrelétrica do mundo, estimulou o desenvolvimento sustentável conciliando a minimização de passivos ambientais com a geração de energia elétrica descentralizada na região de influência de seu reservatório, a microbacia do rio Ajuricaba8. Cientes de que a agricultura familiar brasileira é responsável por 59% da produção de suínos, 50% pela de aves, e por 30% da de bovinos9, apuraram que, no oeste paranaense, os plantéis bovino e suíno desses produtores familiares geravam cerca de 16 mil toneladas de dejetos, os quais contribuíam grandemente para a poluição das águas; mas, se submetidos à biodigestão anaeróbica, poderiam produzir em torno de 319 mil m³ de biogás por ano. Esse volume permite gerar cerca de 507 mil kW/h por ano, ou seja, o suficiente para abastecer 170 residências com um consumo elétrico mensal de 250 kW/h.

Atualmente, a iniciativa da binacional Itaipu em diversas medidas dentro das propriedades agrícola vem corrigindo passivos ambientais em cerca de 200 microbacias hidrográficas em 29 municípios localizados no triângulo Cascavel–Guaíra-Foz do Iguaçu10. No entanto, embora os dados da ANAEEL aqui analisados não permitem discriminar a localização das usinas movidas à biogás, verifica-se na tabela 1 que a atual produção brasileira (74.333 kW) está aquém do potencial avaliado para o oeste paranaense, o que implica na necessidade de uma maior divulgação das vantagens do biogás para geração de eletricidade.

Blay Júnior et al. (2009)11 alertaram que, ao valor de R$ 0,130 kW/hora, o agricultor familiar poderá produzir uma receita de R$65.959,74/ano, com a venda do excedente elétrico para o SIN e, além disso, o biofertilizante, resultado da biodigestão anaeróbica dos dejetos animais, poderá gerar uma receita de R$95.325,23/ano. Ainda, se o projeto de implantação de biodigestores for submetido ao mecanismo de desenvolvimento limpo, os créditos de carbono poderão gerar uma receita estimada de R$93.009,31/ano.

As usinas típicas de processamento de cana-de-açúcar (UTE), durante o período da safra, são autossuficientes em produção de energia elétrica, a partir do uso do bagaço de cana como combustível alimentador das caldeiras térmicas utilizadas na fabricação de açúcar e etanol. O uso de processos mais eficientes, a partir da década de 1980, tornou essas usinas geradoras de excedentes de energia elétrica, os quais são fornecidos para o sistema elétrico brasileiro. Atualmente, 367 usinas produzem 8.532.612 kW, ou seja, 7,0% de toda energia elétrica gerada no país (Tabela 1).

Uma importância das UTHs movidas a bagaço de cana reside na complementariedade sazonal entre a oferta desse resíduo e a de água (para abastecer as hidreléticas) no centro-sul brasileiro. A sazonalidade do regime hídrico tem seu pico entre janeiro e abril (meses chuvosos), quando começa a cair, reduzindo o nível dos reservatórios de água para provimento das hidreléticas, o que põe em risco o fornecimento de energia elétrica do país. Já o auge da produção de resíduos da cana-de-açúcar (palha e bagaço) ocorre nos meses de maior seca no centro-sul (abril a novembro), o que faz com que as usinas de cana-de-açúcar complementem as hidreléticas, disponibilizando o excesso de energia (proveniente do processo produtivo do etanol) para as redes de transmissão do SIN.

Embora as usinas termoelétricas movidas a bagaço de cana (UTE) não estejam longe dos grandes centros de consumo, a complementariedade entre os insumos energéticos é estratégica para o desenvolvimento do país, pois a eletricidade brasileira continua sendo, em quase sua totalidade, proveniente de hidreléticas que, devido ao alagamento de áreas para construção de reservatórios, reduzem o espaço agropecuário e alteram tanto o meio ambiente quanto a biodiversidade regional. Como reflexo a esse modo de produzir energia, as mudanças climáticas têm alterado o ciclo hidrológico (evaporação-precipitação das águas), induzindo à redução dos níveis de água nos reservatórios, em períodos atípicos, o que põe em risco o fornecimento de energia e, consequentemente, o desenvolvimento econômico da sociedade. Também há pouquíssimas áreas para a expansão de hidreléticas, de modo que as que ora surgirem, a exemplo de Madeira e Belo Monte, funcionam pelo sistema fio d’água (reservatórios pequenos e/ou ausentes).

Nesse sentido, o Protocolo Ambiental da cana-de-açúcar, que prevê a erradicação da queima da palha no Estado de São Paulo para 2014 (áreas mecanizáveis) e 2017 (áreas não mecanizáveis), pode ser visto como um estímulo à expansão da bioeletrecidade, pois, uma vez que a erradicação da queima se associa diretamente ao aumento da disponibilidade de palha, espera-se que boa parte desse resíduo agrícola seja destinada para provisão de energia elétrica.

Gerar eletricidade próxima ao local de consumo ou na própria instalação consumidora é vantajoso para o setor energético, pois, além de diversificar as fontes energéticas, criando menos dependência dos recursos hídricos, minimiza os custos de investimentos em transmissão e reduz as perdas nesse elo da cadeia produtiva. Para a pessoa física ou jurídica que gera energia, ela tem redução de custos em sua atividade produtiva (e/ou residencial) decorrentes de menores compras do SIN. Além disso, o excedente de energia elétrica gerado é passível de ser comercializado no SIN, criando uma renda adicional para o produtor (gerador).

Assim, o avanço da bioeletricidade é uma oportunidade de alto valor estratégico para o país, tanto sob a ótica energética em si, proporcionando o aumento da disponibilidade interna feita com base em energias renováveis, quanto principalmente pela ótica do desenvolvimento sustentável.

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 1O dióxido de carbono (CO2) emitido na combustão da biomassa é compensado pelo fixado na fase de crescimento e formação da mesma.

 2Nesse caso, os micro e pequenos geradores devem ser compartilhados com as redes de distribuição.

 3AGÊNCIA NACIONAL DE ENERGIA ELÉTRICA - ANAEEL. Banco de Informações de Geração. Brasília: ANAEEL. Disponível em: <http://www.anaeel.gov.br>. Acesso em: 05 maio 2013. 

4BRASIL. MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E ABASTECIMENTO (MAPA). Plano nacional de agroenergia 2006-2011. 2. ed. Brasília: Embrapa Informação Tecnológica, 2006. 110 p.

5______. MINISTÉRIO DE MINAS E ENERGIA - MME. Balanço Energético do Brasil. Brasília: MME. Disponível em: <http://www.mme.gov.br/mme/menu/todas_publicacoes.html>. Acesso em: 05 maio 2013.

6CENTRO NACIONAL DE REFERÊNCIA EM BIOMASSA - CENBIO. Atlas da Bioenergia no Brasil. São Paulo: CENBIO, 2012. Disponível em: <http://www.cenbio.iee.usp.br/download/atlasbiomassa2012.pdf>. Acesso em: 05 maio 2013.

 7MAYER, F. D.; HOFFMANN, R.; RUPPENTHAL, J. E. Gestão energética, econômica e ambiental do resíduo casca de arroz em pequenas e médias agroindústrias de arroz. In: SIMPÓSIO DE ENGENHARIA DE PRODUÇÃO, 13., 2006, Bauru. Anais... Bauru: UNESP, 2006.

8BLEY JÚNIOR, C. et al.   Agroenergia da biomassa residual: perspectivas energéticas, socioeconômicas e ambientais. 2. ed. Foz do Iguaçú: Technopolitik, 2009. 140 p.

 9BRASIL. MINISTERIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO - MDA.  Agricultura familiar no Brasil e o Censo 2006. Disponível em: <http://www.mda.gov.br/portal/saf/censo_2006>. Acesso em: 25 maio 2010.

 10AGROLINK. Dilma prestigia 25 anos do show rural coopavel. Disponível em:
<http://www.agrolink.com.br/noticias/ClippingDetalhe.aspx?CodNoticia=176686>. Acesso em: 04 fev. 2013.

 11Op. cit. nota 8.

Palavras-chave: agroenergia, bioeletricidade, resíduos agropecuários, cogeração de energia.

 

 


Data de Publicação: 05/06/2013

Autor(es): Silene Maria de Freitas (silene.freitas@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Eduardo Pires Castanho Filho (castanho@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor