Proposta da Política Nacional do Leite e sua Interface com a Pesquisa

 No final de 2012, o setor lácteo nacional esteve reunido em Brasília, na I Conferência Nacional do Leite, por iniciativa da Subcomissão Permanente da Produção de Leite da Câmara dos Deputados. Na ocasião, formaram-se três grupos temáticos (produtores e trabalhadores rurais, cooperativas, indústria e comércio, e governo, entidades de pesquisa e extensão rural) com o objetivo de oferecer subsídios para a elaboração da Política Nacional do Leite.

As propostas dos grupos convergiram e obteve-se um documento com 130 itens que abordaram os temas: defesa sanitária, comercial, capacitação e assistência técnica aos produtores, políticas de crédito, legislação e tributação, infraestrutura e logística, promoção comercial dos produtos lácteos, organização do setor, pesquisa e desenvolvimento.

Mereceu atenção a importância dada à pesquisa, pois se percebe que os setores envolvidos entendem que os investimentos na área são fundamentais para o desenvolvimento da pecuária leiteira. Isso chama atenção num momento que se vem discutindo a pesquisa pública no Brasil. O texto procura discutir esses pontos sob o foco do papel da pesquisa pública.          

Dentre as propostas destacaram-se 12, consideradas prioritárias em função da necessidade deste ter maior objetividade no documento, visto a participação e atuação dos principais ministérios envolvidos (Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Desenvolvimento Agrário e Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior).

Em relação à pesquisa, sugeriram-se 16 pontos no documento geral, mas foram considerados prioritários: o fortalecimento do processo de inovação tecnológica para a cadeia produtiva do leite, com a garantia de recursos orçamentários, sem cortes, e a criação de um fundo setorial específico e de um sistema unificado de dados e estatísticas do setor para fundamentar tomadas de decisão.

Os temas são importantes para a cadeia produtiva e instituições de pesquisa que, se tiverem ações de política setorial relacionadas às políticas públicas, poderão fortalecer seu papel na condução de pesquisas de interesse do setor, contando com verbas para seu desenvolvimento, ponto que muitas vezes tem sido gargalo para a área.

O assunto passa por questões que recentemente foram debatidas na imprensa, mas nem sempre tocam no essencial: qual o papel da pesquisa pública?

Em recente debate na mídia sobre a relevância da pesquisa da Embrapa, Ming coloca que essa empresa de pesquisa “perdeu o bonde” ao deixar de avançar no desenvolvimento de técnicas de modificação genética, por questões ideológicas1. Em artigo de opinião publicado pelo jornal O Estado de São Paulo2, coloca-se que:

A Embrapa e outros institutos públicos de pesquisa e difusão de tecnologia contribuíram de forma decisiva para a criação de uma agropecuária moderna e competitiva no Brasil. Mas o setor privado, munido tanto de um sistema de pesquisas quanto de um eficiente aparelho comercial e financeiro, implantou um novo jogo, enfraquecendo os vínculos entre as entidades públicas e o mercado.

Para Barros3, no entanto, a redução nos investimentos públicos em pesquisa e o intenso debate ideológico que ocorreu nas empresas públicas de pesquisa foram questões que pautaram as decisões destas como também, e principalmente, motivaram a perda de relevância da pesquisa pública, mais que a dependência do financiamento privado para o custeio da agricultura.

Lembra, ainda, que

os recursos dedicados à pesquisa agrícola sofreram fortes contenções nas duas últimas décadas, exatamente no momento que a agricultura brasileira avançou para o cerrado e conquistou participação no mercado internacional de diversas cadeias produtivas. O caso do Estado de São Paulo talvez seja o mais gritante de todos pela relevância que já desempenhou a pesquisa pública paulista. Lamentavelmente, centros de grande relevância na geração de pesquisa no pós-guerra, viram seus quadros se reduzirem e seus recursos de custeio minguarem. Entretanto, é verdade também que o debate ideológico limitou sobremaneira as possibilidades de geração de tecnologia4.

As questões colocadas abrangem pontos importantes nesta discussão, mas cabe lembrar que nem sempre a pesquisa tem relação com a questão da geração de tecnologia, pois essa envolve outros temas como a economia agrícola que abrange diversas áreas como: mercado, estatística, políticas públicas, mão de obra, estudos socioeconômicos, etc.

Já para Celso Ming, a pesquisa pública (no caso da Embrapa) enfrenta crise de identidade e o risco de ser reduzida à insignificância5. E vai além, ao entender que o encolhimento do orçamento resulta, em grande parte, do desvio que a empresa teve devido a preconceitos ideológicos em relação ao desenvolvimento de técnicas de modificação genética.

Apesar de se tocar no ponto da falta de investimento do Estado brasileiro em pesquisa, deixando Estados, como São Paulo, com tradição e competência no desenvolvimento de ciência e tecnologia para trás, apontando interesses ideológicos na condução de uma política pública para a agropecuária, o debate não aborda o tema central que é o papel da pesquisa pública.

A questão ideológica, colocada por Ming e reforçada por Barros, merece atenção, pois cabe lembrar que a pesquisa pública deve ter em conta, antes de tudo,o bem-estar do cidadão, que deve estar acima dos interesses de mercado e, em um momento em que não se tem certeza dos efeitos que uma planta transgênica pode ter no ser humano, cabe ao Estado resguardar o cidadão e não colocar a questão ideológica na frente.

Compete à pesquisa pública se voltar para temas que sejam de interesse da sociedade e que não necessariamente deem lucro, pois há temas que apenas são abordados nas instituições públicas porque estas têm compromisso com a sociedade.

Os investimentos em pesquisa estão diretamente relacionados ao desenvolvimento de um país e, assim, é importante que haja políticas públicas que valorizem o conhecimento científico, fundamental para dar competitividade a ele. Significa dizer que há necessidade de os governos investirem em pesquisa, não somente por meio de incentivos à pesquisa na área privada, mas na área pública, já que nem sempre os interesses do setor privado se emparelham com as necessidades da sociedade.

Antle6 reforça essa postura quando afirma:

a demarcação da linha divisória entre as atividades de pesquisa e extensão dos setores público e privado é apenas uma parte da questão relacionada com o papel do governo na pesquisa agrícola. Mas existe uma ampla gama de pesquisas que incluem desde as relacionadas com ciência básica até as voltadas para formulação de políticas, incluindo as pesquisas em áreas como sanidade alimentar, nutrição, ciências ambientais, ciências sociais e economia, em que os resultados das pesquisas são considerados bens públicos puros. Consequentemente, existe pouco ou praticamente nenhum investimento privado nestas áreas, pois produtos para fins comerciais não são e jamais serão produzidos.

Assim, a inclusão no documento da necessidade de fortalecer o processo de inovação tecnológica, assim como a garantia de recursos orçamentários, sem cortes e a criação de um fundo para a cadeia do leite, ressaltam o papel do Estado na elaboração de pesquisas, já que o setor vê a necessidade de se fortalecer a pesquisa pública e manutenção de um orçamento que garanta sua permanência.

A preocupação com a criação de um sistema unificado de dados e estatísticas aponta para a valorização dos dados produzidos pela pesquisa brasileira, entendendo-os como fundamentais para nortear as decisões da cadeia produtiva, pois essas informações refletem a situação da produção nacional e estadual - apontam os custos de produção, preços pago aos produtores, de atacado e varejo e de insumos; a produtividade; a questão sanitária do rebanho; entre outros.

Complementando, o documento exprime, ainda, a necessidade de se reestruturar, fortalecer e ampliar o sistema brasileiro de assistência técnica e extensão rural público e privado por meio de parcerias pública e privadas com entidades afins, no intuito de capacitar e dar assistência técnica e gerencial à cadeia produtiva do leite.

Essa questão tem uma interface direta com a pesquisa, já que é pela assistência técnica e extensão rural que se dá a difusão da ciência no campo.

No entanto, por muitos anos essa área foi deixada de lado. Segundo citação de Ming7, para Gonçalves houve um desmonte de redes públicas de assistência técnica e extensão rural, que eram os canais de distribuição de sementes feitas pelos centros públicos de pesquisa e a reforma do setor público reduziu a capacidade local da extensão rural estatal8.

Parte dessa realidade vem sendo revertida com a retomada, pelo governo federal, do Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Pnater), instituída a partir de 2003. O programa Pnater foi orientado pelo Programa Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Pronater),

levando em conta os princípios do desenvolvimento sustentável, incluindo a diversidade de categorias e atividades da agricultura familiar, e considerando elementos como gênero, geração e etnia e o papel das organizações governamentais e não governamentais. O Pronater é o instrumento orientador do processo de implementação da Pnater e estabelece as diretrizes e metas para os serviços públicos de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) no País. É coordenado pelo Dater e elaborado, anualmente, para cada Plano Safra da Agricultura Familiar com base nas políticas da SAF, nos programas estaduais de Ater e nas demandas da agricultura familiar9.

O fato de haver uma retomada nesse sentido já é um avanço frente à falta de política anterior, e demonstra uma preocupação fundamental com o tema, o mesmo que foi reforçado no documento de Brasília e representa um fato importante para a divulgação da pesquisa junto ao produtor rural.

O documento elaborado pela cadeia produtiva do leite, pela sua importância como representação das necessidades do setor, ao abordar o fortalecimento do processo de inovação tecnológica e necessidade de um banco de dados unificado com estatísticas do setor, assim como a reestruturação da assistência técnica e extensão rural, nas ações prioritárias de uma política nacional do leite, mostra que o fortalecimento da pesquisa e sua divulgação são itens fundamentais para o desenvolvimento de todos os elos da cadeia. Nesse sentido auxilia a discussão sobre a necessidade de investimentos públicos na área, inclusive com o imperativo de manutenção de recursos para que se garanta o desenvolvimento da ciência e tecnologia como forma de atender as necessidades do campo e aponta a importância de transmissão do conhecimento científico ao usuário da informação, ou seja, o produtor de leite.

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1MING, C. A Embrapa perdeu o bonde. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 31 mar. 2012. Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/celso-ming/2012/03/31/a-embrapa-perdeu-o-bonde/>. Acesso em: 09 jan. 2013.

2O ESTADO DE S. PAULO. Hora de revalorizar a Embrapa. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 05 abr. 2013. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,hora-de-revalorizar-a-embrapa-,857665,

0.htm>. Acesso em: 09 jan. 2013.

3BARROS, J. R. M. de. Embrapa, pesquisa pública e sementes. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 29 abr. 2012. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,embrapa-pesquisa-publica-e-sementes,866801,0.htm. 29/04/2012>. Acesso em: 09 jan. 2013.

4Op. cit. nota 3.

5MING, C. Ainda a crise da Embrapa. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 06 abr. 2012. Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/celso-ming/2012/04/06/3884/>. Acesso em: 09 jan. 2013.

6ANTLE, J. M. Fixando os limites: o papel do governo na pesquisa agrícola. Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v. 14, n. 3, p. 333-362, 1997.

7Op. cit. nota 5.

8GONÇALVES, J. S. A agricultura brasileira, do bonde ao trem-bala. Jornal da Ciência- SBPC, Rio de Janeiro, 10 abr. 2012. Disponível em:  <http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=81918>. Acesso em: 09 de jan. 2013.

9MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. Secretaria da Agricultura Familiar - MDA. Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (Pnater). Brasília: MDA, 2013. Disponível em: <http://comunidades.mda.gov.br/portal/saf/programas/assistenciatecnica/2522569>. Acesso em 24 jan. 2013.

Palavras-chave: pecuária de leite, Política Nacional do Leite, pesquisa pública, assistência técnica e extensão rural.


 



Data de Publicação: 13/02/2013

Autor(es): Rosana de Oliveira Pithan e Silva (rosana.pithan@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor