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Intervenção do Estado nos Preços do Leite e suas Consequências na Produção
Por
cerca de 40 anos o Estado brasileiro interveio nos preços do leite, a fim de
garantir o abastecimento do produto. Essa interferência se deu através do
tabelamento dos preços. O resultado foi baixo investimento na produção, rebanhos
não especializados, crescimento do mercado informal e manutenção de um produto
de qualidade inferior, por muitos anos.
O
governo federal passou a intervir nos preços do produto em 1945, primeiramente
com tabelamento, no Rio de Janeiro, para "amparar a produção do leite destinado
ao consumo do Distrito Federal"1 e garantir o abastecimento,
assegurando o fácil acesso sob o ponto de vista do orçamento
familiar2. Logo, outras capitais e cidades passaram a fazer o mesmo.
Havia também uma preocupação com a regulamentação de critérios sanitários de
processamento e distribuição que pudessem garantir um produto seguro ao
consumidor.
Na
década de 1970, havia um razoável nível de modernização e as condições eram
favoráveis ao desenvolvimento do setor. A pecuária leiteira tinha acesso a
tecnologia, extensão rural, informação e a outros fatores de produção. Houve uma
expansão do complexo lácteo devido ao dinamismo da economia
brasileira.
Em
1972, a Superintendência Nacional de Abastecimento, depois de 27 anos,
reconhecendo que a liberação dos preços incentivaria a melhora do produto,
acabou com o tabelamento do leite B. Como o leite C - o mais consumido e
produzido - continuava controlado, os efeitos foram negativos e impediu o pleno
desenvolvimento deste segmento3.
Muitos optaram por produzir leite B, com melhores preços no mercado. Isso não
impediu que o setor se descapitalizasse e que o produtor, desestimulado pela
baixa remuneração, deixasse de investir.
Entre
abril de 1980 e abril de 1982, outros produtos lácteos passaram a ser tabelados,
incluindo o leite B. Isto foi tão negativo para o segmento que, de dezembro de
1981 a dezembro de 1982, o preço pago ao produtor do leite especial4
cresceu 78,8%, enquanto a inflação chegava a 168%.
Em
1986, o Plano Cruzado congelou praticamente todos os preços, com o intuito de
combater a alta inflação do período. Apenas os leites do tipo A e B tinham seus
preços liberados, mas estes eram pouco representativos na produção total de
leite do país.
Ainda
nesse ano, os dados do Sistema de Inspeção Federal contabilizavam que 43% do
leite produzido por estabelecimentos sob inspeção federal era para a produção de
leite C, 22% para leite em pó e 35% para os queijos e demais produtos lácteos,
ou seja, 65% da produção estava sob controle5.
O
fato criava uma situação diferenciada na captação do produto, nos lucros, na
capitalização das empresas e dos produtores.
Para
garantir o abastecimento do produto, o governo federal passou a fazer
importações que tiveram resultado ainda mais predatório para o produtor, pois os
preços eram inferiores aos praticados internamente. Essas compras representaram
uma evasão de divisas que poderia ter sido contornada com a liberação dos preços
e regulação pelo mercado. Isso estimularia toda a cadeia a investir mais e
poderia resultar na produção de leite de melhor qualidade, com regularidade e
volume, para abastecê-lo.
Não
havia uma política para o setor. O quadro de interesse do governo era marcado
por: "insuficiência de produção própria para atender à demanda, principalmente
das regiões metropolitanas; baixos preços reais do leite C, em relação a
períodos anteriores; e altas importações de produtos lácteos, principalmente
leite em pó, manteiga e queijos"6.
Como
a maior preocupação do governo era com o abastecimento, a agricultura não tinha
uma política efetiva. Havia somente uma política de formação de estoques com
compra de leite em pó, na maioria importado. Contudo, não houve continuidade,
devido à alta inflação e ao déficit público.
A
falta de investimentos na produção, dependência de importações, predominância de
rebanhos não especializados e manutenção e fortalecimento do mercado informal,
que contribuiu para manter a baixa qualidade do produto7,
inviabilizaram a produção de leite.
Na
metade dos anos de 1980, a implantação do "Programa Nacional do Leite para
Crianças Carentes" provocou aumento da demanda. Em 1988, o governo federal
comprou um bilhão de litros de leite pasteurizado tipo C, o que representava 30%
da produção nacional deste tipo de leite, e sua meta era atingir, em 1989, 3,5
bilhões de litros/ano8.
Isto
incentivou o aumento da produção e a readequação das empresas, mas o crescimento
ocorreu com a incorporação de novas áreas, sem aumento da
produtividade.
Em
1990, o programa foi encerrado e reduziram-se as compras de leite em pó de
outros programas sociais. O impacto foi grande, pois os programas demandavam um
volume representativo de leite C.
Foram
muitos anos de preços controlados e isto propiciou uma dependência do setor,
vinculando seu desenvolvimento a ações e políticas do poder público. O programa
de distribuição de leite só contribuiu com isso. Sua extinção trouxe como
consequência o excesso de produto no mercado, descontentamento e prejuízos, pois
a compra pelo Poder Público estimulou a produção e os investimentos. Acostumados
ao amparo governamental, os produtores se sentiram abandonados sem esta política
tutelar.
Em
São Paulo, o fim desse programa causou problemas no escoamento da produção e
levou o setor produtivo a procurar a Secretaria de Agricultura e Abastecimento
do Estado de São Paulo (SAA) para propor a criação de um programa de
distribuição de leite.
Em
1993, a SAA lançou o programa de distribuição gratuita de leite para crianças,
com o objetivo de auxiliar o escoamento da produção, recompor os preços pagos
aos produtores e beneficiar a população carente.
Tal
política favoreceu a vinculação da imagem do leite a um produto social, em
contraposição à visão do produto como um negócio rentável.
Este
conflito de interesses dificulta o posicionamento do setor e cria um obstáculo à
visão do consumidor a respeito do produto, já que o leite é visto como um
produto saudável, necessário ao desenvolvimento das crianças e auxiliar no
tratamento de algumas doenças, ou seja, carrega em si o conceito de qualidade
intrínseca ao produto9.
A
desregulamentação aconteceu no início dos anos 1990. De início, trouxe problemas
aos produtores, pois as leis de mercado diminuíram os preços do leite. Foi
difícil trilhar um rumo para a modernização do setor. Foram muitos anos sob a
tutela do poder público e a organização do setor produtivo se mostrou
despreparada para abrir novas frentes de luta para tornar o negócio do leite
rentável.
Tiveram ainda que enfrentar a concorrência com os parceiros do Mercosul,
recém-criado. O Brasil era o parceiro mais sensível ao processo de integração,
pois sua produção de leite, apesar de superior à da Argentina e Uruguai, quando
comparada à possibilidade de atendimento da população era
inferior.
O fim
do controle de preços representou o início de uma nova etapa para a pecuária
leiteira com o início de um processo de transformação no complexo lácteo,
abertura para o mercado externo e consolidação do Mercosul, segmentação do
mercado consumidor, disparidade de contratos entre produtores e laticínios,
pagamento por qualidade, crise de identidade do cooperativismo leiteiro e
expansão de multinacionais e/ou de grandes grupos, com fusões e
concentrações.
Nesta
década, o crescimento da produção foi de 36,4% em comparação com os anos 1980.
Ocorreram mudanças no mapa de produção nacional com expansão da produção no
Centro-Oeste e Sul fazendo com que, em 25 anos, a Região Sudeste diminuísse seu
peso relativo10.
Isto
foi possível devido à "mudança no hábito de consumo da população que se voltou
para o leite longa vida" que, pela sua maior durabilidade, possibilita sua
produção em locais mais distantes dos grandes centros consumidores, em regiões
com menor custo das terras.
A
introdução desse leite no Brasil ocorreu em 1972. Em 1975, respondia por 0,8% do
mercado de leite fluido comercializado11; em 1997 ultrapassou o leite
pasteurizado com 51,9% e, em 2006, alcançou 75,8% do volume comercializado,
segundo a Associação Brasileira de Leite Longa Vida (ABLV).
Isto
foi reflexo da preferência do consumidor devido à praticidade e preço no varejo
e levou à mudanças em toda estrutura de produção e
comercialização.
No
entanto, outros fatores como: o baixo preço do concentrado para rações; a perda
de competitividade da pecuária extensiva de corte; a disponibilidade de crédito
do Fundo Constitucional do Centro-Oeste (FCO), além do uso de tecnologias de
menores custos e de benefícios fiscais (ICMS) aos laticínios para produção de
leite UHT do Estado de Goiás, a partir da implantação de uma logística para
atender desde os mercados consumidores mais próximos até os mais distantes,
influenciaram fortemente a produção nacional12.
Após
um período turbulento, se iniciou a busca por maior eficiência, redução de
custos e investimentos na qualidade, bem como um processo de diversificação de
produtos e investimentos em todos os setores, desde a fazenda até o varejo, além
da entrada do setor no mercado externo.
Paralelamente, as grandes cadeias de varejo aumentaram de forma significativa
sua importância como canal de comercialização dos produtos lácteos e, hoje, este
é um dos setores que atuam fortemente na formação do preço do leite. Nesse
aspecto, o poder de "barganha" do produtor ficou absolutamente
comprometido13.
O
tabelamento do leite e a falta de políticas comprometeram o desenvolvimento do
setor, criando uma relação paternalista entre os produtores e o Estado. Aos
poucos, o fim da regulamentação trouxe mudanças significativas que têm sido
digeridas pelo segmento, pois o longo período sob tutela do governo, com baixa
organização, levou à necessidade de adaptação ao mercado e suas
leis.
A
perspectiva é de que a cadeia produtiva de lácteos se estruture cada vez mais
frente às novas tendências do mercado interno e pelo interesse no aumento das
exportações. Esse novo período, aos poucos, vem mostrando uma reestruturação do
setor que ocorreu a partir do processo de fusões e concentrações, crise do
sistema cooperativo e maior preocupação com a qualidade.
__________________
2MARTINS P. C.; FARIA, V. P.
Histórico do leite no Brasil. In: CÔNSOLI, M. A.; NEVES, M. F. (Coord.). Estratégias para o leite no Brasil. São Paulo: Atlas
S.A./PENSA, 2006. p. 48–65.
3Op. cit. nota
1.
4O leite especial, com 3,2% de
gordura, foi criado pelo governo federal para enfrentar a necessidade de um
reajuste substancial nos preços, devido à defasagem em que se encontravam; a
falta de estoques para enfrentar a entressafra e a necessidade de conter o
impacto do aumento do preço do leite sobre o índice inflacionário. Mas a
justificativa que foi utilizada dizia respeito à má qualidade do leite
distribuído à população de São Paulo, constatada em análises feitas no leite
tipo C.
5Op. cit. nota
1.
6Op. cit. nota
1.
7BORTOLETO, E. E. et al.
Leite: realidade e perspectivas. São Paulo: Secretaria de Agricultura e
Abastecimento do Estado de São Paulo, 1997. 57 p. (Coleção Cadeias de Produção
da Agricultura, v. 3).
8Op. cit. nota
1.
9SILVA, R. O. P. Educação: o
melhor caminho para o pequeno produtor de leite. In: Banco de dados IEA.
Disponível em: <http://www.iea.sp.gov.br>. Acesso em: 1 fev.
2008.
10Op. cit. nota
2.
11DIAS, J. C. O leite na
paulicéia. São Paulo: Calandra Editorial, 2004. 148 p.
12SILVA, R. O. P.; FREDO, C. E.
Relação da queda da produção leiteira paulista com o número de empregos formais
da cadeia produtiva. Revista Indústria de Laticínios, São Paulo, ano XI,
n. 71, p. 71–74, set./out. 2007.
13SANTOS, M. V.; FONSECA, L. F.
L. Granelização e resfriamento do leite e seu impacto sobre a qualidade.
Revista Leite & Derivados, ano XII, n. 71, jul.
2003.
Palavras-chave: produção de leite,
tabelamento, desregulamentação.
1MEIRELES, A. J. A (des)Razão
laticinista: a indústria de laticínios no último quartel do século XX. São
Paulo: Cultura Editores Associados, 1996. 268 p.
Data de Publicação: 31/08/2009
Autor(es):
Rosana de Oliveira Pithan e Silva (rosana.pithan@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
Alcina Maria Liserre (alcina.maria@ital.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor