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Reforma tributária: nem toda isenção ou desoneração beneficia os pobres
A reforma tributária realizada em regimes democráticos, em qualquer nação em qualquer período da história, será sempre um tema polêmico. Aliás, como sempre se discute apenas quem paga a conta, não se trava a discussão sobre o tributo da sociedade necessário para sustentar o Leviatã, mas do que será imposto por esse 'monstro' a cada segmento social. E todos querem receber benefícios e nunca se submeter ao que lhes será imposto. Hipocrisia fiscal: interesses nebulosos em nome dos pobres A discussão da carga tributária deve ser definida na discussão do orçamento, não como ficção do planejamento governamental, mas como instrumento de planejamento do desenvolvimento. A cada quatro anos, nos Planos Plurianuais (PPAs), e a cada ano nas, Leis Orçamentárias Anuais (LOAs), em função das despesas e das receitas, é que se há de discutir a racionalidade das receitas necessárias frente à qualidade dos investimentos previstos. E como cada governador terá que tributar seu consumidor (e eleitor), com a prevalência da oneração do ICMS no destino, amplia-se o controle democrático sobre a carga tributária, fato impossível para a cidadania no princípio da origem, quando o ICMS já vem embutido.
Nada mais incoerente do que, em nome da defesa de interesses regionais, a emergência de personagens, como que novos 'Robin Wood', na defesa da retirada de recursos dos estados 'ricos' para distribuir aos estados 'pobres'. Não apenas porque isso é uma retórica que não corresponde à verdade dos fatos, dada a estrutura do sistema tributário em debate no Congresso Nacional que ainda penaliza os denominados estados 'ricos', mas sobretudo porque faz emergir o que de mais nefasto existe na política brasileira, ou seja, o fato de se justificar o atraso quando ele é consistente com dado interesse 'oligárquico' regional.
A mudança no sistema tributário é defendida em nome da desoneração da produção e na busca de tornar os impostos ao menos mais funcionais com a dinâmica econômica, visando destravar obstáculos às decisões de investimentos produtivos, que alavancariam a renda e as oportunidades de trabalho. Logo, a lógica dessa busca é concentrar os impostos sobre a renda, a propriedade e o consumo, na mesma medida em que deveriam ser desonerados, nos fluxos internos às cadeias de produção, os produtos como veículos portadores de valor enquanto trabalho acumulado.
Mais do que isso, numa realidade marcada pela desigualdade econômica entre regiões e famílias, há que se estabelecer mecanismos que reduzam a regressividade distributiva. Entretanto, há que se definir os meios, a fim de evitar a hipocrisia da defesa de privilégios das elites em nomes dos pobres, tanto no plano regional quanto no plano dos indivíduos.
Em economias continentais como a brasileira, onde os agronegócios consistem no mais importante setor econômico, uma disfuncionalidade do sistema tributário está no fato de que o principal imposto sobre o valor adicionado, o ICMS, se baseia no princípio da origem, e não no do destino. Esse é um tributo típico da reprodução simples do capital, com produtos finais produzidos e acabados na origem. Ora, na reprodução ampliada do capital, com cadeias de produção centradas em estruturas produtivas globalizadas, essa perspectiva é disfuncional com a agregação de valor, onerando matérias-primas e as exportações, ou seja, encarecendo o produto.
Para o consumidor, não há vantagens nesse sistema tributário arcaico, pois os oligopólios atacadistas e varejistas repassam os impostos e as taxas recolhidas. Na situação de escassez de oferta, transferem os 'custos' tributários em proporção maior para os preços finais, onerando os consumidores, em especial dos produtos essenciais de demanda inelástica. Numa situação de demanda retraída, quem paga a conta é o agente com menor poder de mercado, pelo repasse em cadeia para a origem, que na agricultura é o agricultor familiar. Logo, além de disfuncional, esse tributo é perverso por ser regressivo, ao recair em maior proporção sobre aqueles com menor poder de barganha e, conseqüentemente, menor capacidade de defesa de sua renda.
Numa economia continental calcada nos agronegócios como a brasileira, a disfunção do ICMS baseado no princípio da origem é mais gritante, na medida em que uma vantagem competitiva basilar dos agronegócios é exatamente a complementaridade de safras que permite uma realidade mais próxima do 'just in time' redutor de estoques para ampla gama de produtos. Exemplo? Por não ter inverno rígido como o do Meio Oeste Americano, a produção de grãos e fibras no Brasil, pela maior amplitude dá época de plantio e de colheita, pode ser obtida com o padrão de mecanização igual ou superior ao norte-americano com a metade do número de tratores por unidade de área.
Logo, essa vantagem competitiva brasileira é imbatível frente aos seus concorrentes diretos, sem subsídios e com depreciação de forma mais consistente do capital fixo. Assim, o Brasil, com certeza, será em uma década o maior produtor de grãos e fibras do mundo. Mas isso pode ser pouco expressivo pois a agregação de valor a esses produtos é penalizada pelo efeito em cascata da tributação realizada sobre o valor adicionado em cada operação, com base no princípio da origem, dificultando a integração interestadual criadora de economias de escala e gerando distorções alocativas.
Dessa maneira, se a reforma do sistema tributário eliminar somente esse entrave arcaico, representado pelo principal imposto sobre o valor adicionado, já será um avanço sem precedentes. Mais ainda: se de imediato pôr freio noutra postura arcaica e anti-federativa, consistida nas vantagens fiscais calcadas na desoneração de produtos na origem, típicas da guerra fiscal, será outra conquista ímpar.
Numa realidade de sistema tributário tão atrasado, não se pode esperar que a modernidade ilumine o futuro da noite para o dia, mas se ao menos superar essa realidade inaceitável do ICMS gravado na origem, já será uma luz no fim do túnel. Para isso, é estratégico construir as bases de um mercado nacional, a partir de um sistema tributário que rompa com a fragmentação dos feudos regionais pela desuniformidade do principal tributo sobre o valor adicionado, o ICMS. Que isso exige período de transição, também é uma perspectiva correta, desde que essa transição não seja a eternidade de décadas.
As distorções alocativas com a migração para os paraísos fiscais, não apenas das lavouras de grãos e fibras e da pecuária de corte, como também das agroindústrias de esmagamento e fiação, da agroindústria de frigoríficos e mesmo da agroindústria de alimentos, são tão visíveis que, no médio prazo, a denominada 'perda dos estados exportadores' tende a ser superada pela realocação estrutural na medida em que buscarão eficiência da produção próxima dos centros consumidores e das plataformas de exportação, ou seja, onde a logística da sua cadeia de produção seja a mais eficiente para obter preços e qualidade compatíveis com o mercado globalizado.
Não há dúvidas que, no longo prazo, a consagração plena do imposto sobre valor adicionado cobrado no destino será um instrumento de superação do conflito federativo brasileiro, na medida em que dará vazão à plena mobilidade de produtos e de serviços. E, nessa condição, a construção de posições competitivas superiores está exatamente na estrutura econômica de atração do investimento com base nos elementos essenciais como capital intelectual, comunicação, tecnologia e transportes.
Mas a discussão da reforma tributária tem apresentado outros elementos sem qualquer base factual para que sejam destacados, todos calcados na defesa exacerbada de interesses específicos 'travestidos' de racionalidade tributária. Um desses elementos é o coro orquestrado contra um possível aumento da carga tributária, por meio de comparações absurdas com outros países com os quais a economia brasileira não guarda a menor similaridade.
A irracionalidade que poderia ser derivada de uma carga fiscal muito alta para os padrões brasileiros não decorreria do desenho do sistema tributário, porque qualquer sistema, mal gerenciado, pode produzir essa distorção. Logo, quase nada contribui essa 'cantilena' de pretensa luta contra a elevada carga tributária, quando a questão colocada em debate é o desenho do sistema tributário.
Ademais, não se nota qualquer segmento empresarial discorrendo sobre o verdadeiro absurdo das distorções alocativas derivadas das renúncias fiscais associadas às estratégias de atração de investimentos por algumas unidades da federação. Postam-se como 'inconfidentes modernos' na denúncia de uma pretensa 'derrama arrecadatória', quando na verdade muitos são candidatos a novos 'capitães hereditários' aquinhoados por algum novo Dom Manuel o Venturoso que lhes ofereça benesses para aventurarem num novo eldorado.
A distribuição do ônus tributário não é uma questão presente apenas nas posições das classes sociais, mais visíveis no empresariado, em que muitos o fazem não em seu nome, mas em nome dos trabalhadores, do emprego. A distribuição das receitas potenciais leva ao acirramento do regionalismo, mais uma vez exacerbando elementos típicos do atraso, que aliás sempre fizeram do Brasil uma sociedade de história lenta, onde a revolução burguesa se forma como 'estalagmites' e 'estalagtites' pelo pingar de gotas de calcário em séculos de história.
O reconhecimento da disparidade regional não implica que, para reduzir essa desigualdade estrutural, o Brasil seja condenado por mais meio século à 'escravidão' de um sistema tributário fomentador de distorções alocativas derivadas da guerra fiscal, algumas constitucionalizadas. Tal como no passado, essas posturas não produzirão mais que o retardamento da consolidação de um amplo mercado nacional com mobilidade plena de produtos e de serviços, na mesma medida em que a escravidão retardou a formação da demanda efetiva compatível com o processo de industrialização, só possível com as forças produtivas especificamente capitalistas calcadas no trabalho livre.
A redução da disparidade regional não é problema de política governamental que deva ser, do ponto de vista técnico, encarada como uma questão a ser enfrentada pelo lado da receita fiscal, mas sim da despesa fiscal, o que é muito mais eficaz, eficiente e efetivo. Num sistema tributário racional, porque equilibrado, numa economia marcada pela desigualdade, há que serem definidos instrumentos, inclusive constitucionais, que garantam investimentos em regiões menos desenvolvidas, buscando a redução das diferenças.
Daí ser muito importante a definição do Fundo de Desenvolvimento Regional, como o contido na Proposta de Reforma Tributária, que financie investimentos produtivos e estruturais que sejam funcionais com a alavancagem produtiva dessas economias regionais periféricas. Ao invés de definir locais, regiões ou unidades da federação, esse instrumento constitucional deveria apenas definir as fontes e os montantes dos recursos desse Fundo, além dos critérios da distribuição das aplicações.
O parâmetro dessa medida fiscal de distribuição de recursos deve ser colocado sempre do lado da despesa. Poderia ser fixado constitucionalmente com base nos municípios com Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) menores do que o IDH médio nacional, na proporcionalidade de sua população. O objetivo é alçar esses indicadores para níveis no mínimo iguais à média brasileira, reduzindo distâncias regionais.
Assim, a partir de um indicador produzido por organização neutra em relação ao conflito federativo, no caso a Organização das Nações Unidas (ONU), cada unidade da federação brasileira, na proporção dos seus residentes em municípios com IDHs inferiores à média nacional, teria possibilidade de apresentar projetos ao Fundo de Desenvolvimento Regional. E buscaria obter, para investimentos produtivos, recursos proporcionais aos seus habitantes submetidos a condições inadequadas de desenvolvimento humano. Isto sim é coerente com o discurso de redução das disparidades regionais, onde quer que elas estejam.
Outra incoerência está na defesa da redução da carga tributária sobre os produtos da cesta básica, principalmente de alimentos. Nada mais regressiva e hipócrita. Uma coisa é defender um gradiente de alíquotas de ICMS segundo o critério de essencialidade do produto, distinguindo supérfluos como cigarros de essenciais como feijão e arroz. Outra é afirmar que a isenção de ICMS de feijão e arroz é importante para que os pobres possam ter alimento mais barato. Quanto maior a essencialidade do produto, a ela devem estar associadas alíquotas de tamanho menor em proporção, mas nunca tarifas igual a zero para os ditos produtos essenciais como os alimentos básicos.
Da mesma forma que a posição regionalista, é hipócrita a defesa da isenção de tributos sobre a cesta básica. Ora, tanto os mais ricos como os mais pobres consomem esses produtos, sendo os mais ricos em quantidades por pessoa muito superiores às dos mais pobres. Assim, mais do que beneficiar os mais pobres a isenção beneficia os mais ricos. E mais: há que se considerar os miseráveis que sequer possuem renda, e quase não comem, e por isso não seriam beneficiados com a isenção.
Da mesma forma que o Fundo de Desenvolvimento Regional, a reforma tributária, ao invés de isentar a cesta básica de ICMS e outros tributos, deveria prever a criação de um Fundo de Combate à Fome, em cada unidade da federação, no qual seria recolhida toda a arrecadação de ICMS obtida da tributação de produtos da cesta básica, para ser destinada à aplicação exclusiva em projetos e programas de alimentação e nutrição de populações carentes. No limite, essa arrecadação criaria mecanismos capazes de sustentar políticas compensatórias dirigidas, preferencialmente, àqueles que, sendo miseráveis, não têm renda suficiente para se beneficiarem da isenção fiscal.
Tem-se claro que, em algumas unidades da federação, essa arrecadação pode ser insuficiente, exigindo a ação complementar de programas federais para erradicar a fome. Porém, em unidades da federação desenvolvidas como São Paulo, onde a miséria e a fome, mais que urbanizadas, estão metropolitanizadas, esse instrumento seria importante. E o Sistema Tributário seria menos regressivo no tocante à tributação da cesta básica.
Data de Publicação: 29/09/2003
Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor