Agronegócios: desenvolvimento e territorialidade em economias continentais

            A característica fundamental dos agronegócios é a de se constituir no principal setor econômico de economias continentais, irradiando o processo de desenvolvimento para amplos espaços geográficos. Tanto é assim que na economia norte-americana, a mais industrializada do globo, esse setor representa mais de 35% da riqueza gerada e detêm a principal base multiplicadora do emprego.
            Essa realidade, de ocupação produtiva de amplo espaço geográfico - que formou o mercado costa a costa, do Atlântico ao Pacífico, gerando a maior economia nacional do mundo -, não pode ser entendida a partir das chaminés, mas do arado e do laço. Afinal, não é exatamente essa característica que se encontra imortalizada nos filmes de faroeste, cuja trama envolve lutas pelas terras entre índios, gado e lavouras? E as estradas de ferro cortavam terras para transportar o quê, senão produtos dessa agropecuária em expansão!?
            O que diferencia a economia dos Estados Unidos das demais economias agrárias foi que nesse país se realizou um processo de industrialização onde o motor da interiorização e do alastramento da produção das fábricas foi a multiplicação das agroindústrias. E, para tal, uma imensa gama de serviços, inclusive públicos como a pesquisa agropecuária e a extensão rural, foi implantada e expandida a partir de 1860.
            Não há como explicar o desenvolvimento da economia norte-americana com base no estereótipo representado pelo fordinho, versão standartizada do automóvel. Não tenho a menor dúvida que os tratores da John Deere foram muito mais importantes para os Estados Unidos do que os carros de Henry Ford.
            Entendo que essa inversão de valores decorreu da hegemonia política, e principalmente cultural, da cidade sobre o campo. Tal hegemonia, entretanto, esvaiu-se em si mesma pela urbanização do campo, sendo que, no momento atual, se redescobrem valores tipicamente rurais, internalizados nas cidades, como a música country e, por que não (?), a qualidade de vida em contato rotineiro com a natureza.
            Esse processo de transformação capitalista, com suas mediações peculiares, irradia-se pela economia continental brasileira no seu desenvolvimento enquanto capitalismo tardio.
            Para entender essa argumentação na profundidade necessária, há que se romper com as divisões setoriais clássicas, tal como primário, secundário e terciário, ou no formato de agricultura, indústria e serviços. Essa estrutura funcional de setorialização da economia não permite uma apreensão adequada da dinâmica econômica das economias capitalistas atuais.
            Não se trata mais de contrapor o urbano ao rural, as cidades ao campo, a máquina à terra, contradições típicas da passagem do feudalismo para o capitalismo que as transformações econômicas já deixaram para trás no tempo histórico. A contemporaneidade estrutural da economia e da sociedade, submetida no seu todo aos axiomas capitalistas, exige que exatamente esse panorama de totalidade presida as análises, em que as especificidades do particular não negam, mas reforçam o geral.
            Numa visão de cadeia de produção de cada agronegócio, há tanto a terra quanto as indústrias e os serviços no mesmo encadeamento produtivo. Ressalte-se que procuramos ficar longe da pretensão, equivocada, de minimizar a importância histórica dos ciclos industriais, que, no seu tempo e no seu lugar, determinaram a revolução das estruturas produtivas e sociais. As fábricas estão aí, bem como as cidades (e que cidades !), quando se pensa nas megalópolis como Cidade do México, New York e São Paulo.
            Contudo, é fundamental resgatar a relevância do campo, que não desapareceu. Ao contrário, desenvolveu-se, negando o vaticínio da perda de significância com as transformações econômicas, que lhes impunham os teóricos tradicionais do desenvolvimento econômico.
            Nem mesmo tem-se aqui a idéia de negar o papel da indústria de bens de capital como determinante da dinâmica econômica capitalista. O que se deve ter clareza é que, em economias continentais, a multiplicação das forças produtivas especificamente capitalistas se dá num padrão da indústria de consumo, configurado na preponderância da agroindústria. Esta sim, ainda que seja indústria, não pode ser visualizada fora do contexto das cadeias de produção que lhe dão concretude e origem.
            Para os serviços, similar argumentação pode ser desenvolvida, o que nem sempre está explicitado nas análises do que se denomina 'tercearização'.

Cadeias de produção dos agronegócios e as políticas públicas

            As cadeias de produção dos agronegócios são a síntese de uma territorialidade integradora derivada do processo de desenvolvimento capitalista, que, como afirmou o maior dos filósofos alemães em plena metade do século XIX, atingiu até as Muralhas da China.
            Os agronegócios apresentam características essenciais sobre as quais as políticas governamentais podem propiciar maior ou menor aderência, enquanto estimuladoras da dinâmica econômica. A mais relevante é a complementaridade das várias zonas de produção, que permite superar as limitações das ofertas sazonais de produtos.
            Para um expressivo conjunto de produtos, as cadeias de produção necessariamente perpassam mais de uma unidade da federação brasileira, tornando impossível estabelecer uma cadeia de produção competitiva de forma plena sem resolver-se os conflitos de integração interregional. Perde-se assim um dos mais importantes atributos da competitividade dos agronegócios brasileiros, derivados de uma territorialidade que no seu conjunto conforma vantagens competitivas expressivas com o uso pleno das estruturas de logística de pós-colheita e mesmo do capital fixo compreendido como os 'bens de capital dos agronegócios'.
            Vejam-se dois exemplos, tomando as duas pontas do processo produtivo, com as cadeias de produção de grãos e fibras e as de frutas frescas.
            Nos grãos e fibras, diferentemente da estrutura do Hemisfério Norte, como a norte-americana, a amplitude do período de plantio e colheita é maior no Brasil. Assim, na ausência do inverno rigoroso, pode semear-se (e com isso colher) num horizonte de tempo maior. Com uma relação área/máquina maior, pode obter-se um nível de mecanização igual ou superior ao norte-americano, conduzindo à intensificação do uso da máquina e com isso à melhor depreciação do capital fixo, o que gera vantagens de custos inacessíveis aos padrões estadunidenses.
            Numa visão mais ampla desse processo, integrando as possibilidades climáticas de períodos de plantio de Sul a Norte, com empresas prestadoras de serviços de mecanização conferindo mobilidade ao parque de máquinas, do plantio à colheita, essa vantagem competitiva de custos poderia ser ainda ampliada e tornada praticamente insuperável, sem subsídios ainda mais substantivos que os atualmente praticados pelas nações desenvolvidas.
            No exemplo das frutas frescas, a questão está nas vantagens passíveis de serem obtidas, com a redução dos custos de transação na logística de pós-colheita.
            As frutas frescas mais transacionadas no mercado mundial estão centradas em quatro produtos que respondem por mais de dois terços das vendas: citros (laranja e tangerina), banana, uva e maçã. As demais frutas complementam a riqueza da cesta de produtos, ocupando em zonas específicas nichos de mercado.
            Noutras palavras, uma estrutura competitiva de frutas, de qualquer das grandes multinacionais frutícolas, consiste na exploração, em nível mundial, da complementaridade da produção dessas frutas em várias partes do mundo, combinadas com o domínio de pelo menos duas frutas estratégicas.
            Não sem razão, as maiores companhias têm domínio quase absoluto sobre as transações com banana desde o princípio do século - daí o apelido de companhias bananeiras -, atuando na América Central e no Caribe, com tentáculos noutras regiões como o Chile e as Filipinas.
            O caso chileno é típico, pois sua competitividade em frutas, em especial a uva, foi montada pelas grandes companhias para usufruírem das vantagens da venda de uva na entressafra do Hemisfério Norte. Por isso, é mais correto falar-se em frutas no Chile do que frutas do Chile, e essa diferenciação não é mera questão de semântica.
            Pois bem. Nas frutas frescas, qual país, que não o Brasil, pode ofertar uma cesta de produtos com todas as quatro frutas estratégicas e, ainda, incrementar essa riqueza com outras espécies para ocupar nichos de mercados, oferecendo variedade de frutas e qualidade a partir de uma logística nacional?
            Em síntese, há que se colocar a territorialidade como um axioma inexorável do desenho de políticas públicas, com base no pressuposto de que os agronegócios em economias continentais configuram não apenas o principal setor dessas economias, como também sua competitividade em termos de custos de produção e custos de transação reside exatamente na amplitude que a complementaridade de oferta primária pode conferir.
            A sazonalidade da produção biológica, associada à estruturação de cadeias de produção em sistemas próximos ao 'just in time', tanto para os segmentos à montante quanto para os à jusante das cadeias de produção, é elemento integrador que necessariamente leva a políticas nacionais convergentes com a transformação da territorialidade.

Data de Publicação: 22/09/2003

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor