Políticas De Intervenção No Mercado De Café: Uma Análise Crítica1

            Em 1931 o governo brasileiro procurou o governo da Colômbia para que esse país compartilhasse conosco o ônus de uma política de restrição à oferta de café, cujo objetivo era manter os preços artificialmente elevados no mercado mundial. Esse pleito, embora apoiado pelo governo colombiano, não se concretizou, uma vez que foi fulminado pela poderosa federação dos cafeicultores. O motivo dessa decisão estava bem explicitado num texto de uma publicação da própria federação que dizia: 'sob a política de defesa do café, o Brasil teve que fazer enormes gastos para manipular os preços internacionais. Liderados pela Federação Nacional dos Cafeicultores, os agricultores colombianos capitalizaram jubilozamente esses maiores preços através do incremento de sua produção cafeeira'.
            Lembramos esse episódio para mostrar com um exemplo (até pedagógico) que a intervenção no mercado de café sempre foi uma preocupação entre países produtores, mas a conveniência ou não de se implementar tal política sempre dependeu de uma série de fatores como a situação macroeconômica do país, o estágio de desenvolvimento de sua produção de café etc., sendo motivo de intensos debates entre os diversos agentes desse agronegócio.
            Neste artigo, pretende-se discutir as principais questões relacionadas com a intervenção no mercado de café. Não se pretende esgotar o assunto e muito menos se arvorar em donos da verdade, mas tão-somente fazer uma reflexão sobre essa questão de interesse de toda a Nação, lembrando que decisões apressadas, embora possam trazer benefícios momentaneamente ao setor, podem causar grandes estragos a médio e longo prazos.
            Inicialmente tem que ser ressaltado que toda discussão em torno da retenção perderá qualquer sentido prático, caso o prolongado período de estiagem a que foram submetidas as principais regiões cafeeiras tenha afetado de tal forma as condições hídricas do solo e da planta, como alegam alguns técnicos e produtores, fazendo com que a produção brasileira de café do próximo ano sofra tamanha redução de modo a alterar a atual situação mundial de excedente de produção em relação ao consumo. Entretanto, mesmo que essas previsões venham a ocorrer, continuam válidos os conceitos aqui emitidos, pois são conceitos atemporais, isto é, não limitados no tempo, mas tão-somente relacionados com a questão da auto- sustentabilidade do setor no longo prazo.
            O primeiro ponto que gostaríamos de colocar para reflexão é que a retenção tende a promover uma distorção alocativa no uso dos recursos produtivos. Esse é um conceito econômico que raramente tem sido colocado na pauta das discussões, mas que é de fundamental importância para quem tem a responsabilidade de gerir recursos públicos. Até é compreensível que algumas lideranças do setor café desconheçam esse conceito, que, entretanto, não deveria ser ignorado por quem tem a responsabilidade de cuidar de políticas e recursos públicos. É claro que existem alguns questionamentos de ordem teórica a respeito (inclusive de juízo de valor), mas fundamentalmente esse conceito indica que os recursos e fatores produtivos existentes numa sociedade devem ser utilizados da forma mais eficiente possível, o que significa produzir a custo mais baixo e com a melhor qualidade, utilizando-se das técnicas recomendadas pelas instituições de pesquisa. Caso contrário, melhor seria canalizar esses recursos para outros setores ou atividades em que esses aspectos são contemplados. Ter clareza disso e assim proceder é fazer o que os economistas chamam de alocação racional de recursos produtivos. Haveria um ganho para toda a sociedade e não somente para um segmento produtivo especificamente. Assim, implementar uma política de retenção com objetivo de elevar artificialmente os preços (em relação às condições de mercado), contribuindo, assim, para manter na atividade produtores (e países produtores) ineficientes que tenham talvez condições de produzir melhor outro produto que não o café, não é desejável nem do ponto de vista econômico e nem do social.
            Associada a essa questão alocativa dos recursos, e talvez até em função disso, a retenção tem uma tendência de inibir a incorporação de novas tecnologias no processo de produção. Por que isto ocorre? Uma das maiores críticas às políticas de sustentação de preços é que essas políticas criam uma certa inércia de preços de difícil solução (mesmo que as condições de mercado tenham sido alteradas), devido não somente à morosidade administrativa mas também aos interesses políticos e econômicos fortemente envolvidos. Em um cenário assim protegido, a racionalidade empresarial leva os agentes econômicos a não adotarem técnicas que reduzam custos de produção na medida em que o ambiente competitivo não é o mercado e sim as instituições protetoras; o mais 'racional' nessas circunstâncias é, portanto, atuar junto a essas instituições protetoras. Não deve ser ignorado, todavia, que o ônus dessa opção acaba sendo suportado pela sociedade, através de pagamento de preços mais elevados para o seu próprio consumo e da impossibilidade de ampliar sua participação no mercado externo com uma estratégia de preços mais competitivos.
            Outro problema relevante da retenção é que ela caminha no sentido contrário ao das transformações que vêm ocorrendo no mundo dos negócios, processo esse que se tornou mais claro a partir da década de 90. Até então os interesses do consumidor ocupavam posição secundária nesse mundo, prevalecendo em primeiro lugar a vontade e os interesses dos produtores de bens e serviços. Era a época da produção em massa e da pouca diferenciação de produtos. Com a mudança de foco, iniciou-se processo de alteração profunda nas organizações produtivas e de serviços, visando atender aos novos interesses ou novas necessidades dos consumidores. Alvin Toffer, cientista social de renome internacional, menciona que essa fase de padronização de produtos e processos cede lugar ao que ele chama de customização em massa, isto é, o atendimento da demanda cada vez mais segmentada, chamando ainda atenção para o fato de que a tão comentada nova economia significa trabalhar não só com estruturas diferentes mas também com novos princípios. O surgimento dos cafés especiais nos Estados Unidos deve ser analisado sob esse contexto mais amplo e não simplesmente como movimento setorial e localizado de reação ou rebeldia dos consumidores insatisfeitos com os tipos de cafés que lhes eram oferecidos. A ampliação das práticas de contratos de fornecimento de café, agendados entre Brasil e importadores exigentes em bebidas, com cláusulas bem definidas quanto à qualidade certificada e prazo de entrega, é exemplo claro de uma nova dinâmica que permeia esse mercado e que se contradiz frontalmente com o espírito de retenção. As demandas por cafés orgânicos e bourbons são exemplos de novas exigências nesse mundo em evolução que exigem compromissos da parte de fornecedores.
            Outra abordagem também de natureza teórica que não pode deixar de ser considerada está relacionada com o problema da estabilidade de preços e renda alegada pelos defensores da retenção. É justa essa preocupação dos cafeicultores, mas tentar resolver o problema via retenção é um equívoco. Além das questões burocráticas e políticas já mencionadas, não se pode garantir que as intervenções propiciem a desejada estabilidade de preços e renda. Pior ainda, dependendo do tipo de intervenção posta em prática, pode-se agravar mais ainda essa instabilidade. A explicação para esse fato é que, ao se induzir o mercado a comprar menos quando se devia comprar mais e vice-versa, está-se introduzindo um artifício que reduz o efeito-renda no sistema de comercialização, acentuando a inelasticidade da curva de demanda para o café. Quanto menos elástica a demanda, mais instável é o mercado de um produto. Os efeitos disso, entretanto, só se tornam mais visíveis a médio e longo prazos.
            A intervenção, aparentemente, ignora os movimentos cíclicos dos preços no mercado de café. Como toda atividade econômica, o café também está sujeito a períodos de preços favoráveis e desfavoráveis. Estes ciclos são determinados por fatores tanto endógenos quanto exógenos (geadas, secas, etc.) ao mercado desse produto. Após ter alcançado as cotações mais altas nessa década em maio de 1997, o café está a caminho de um período em que os preços serão ainda mais deprimidos. Essa tendência poderá sofrer interrupção temporária devido a fatores climáticos, mas, tão logo as condições estejam normalizadas, ela retomará o curso esperado, talvez até com maior intensidade, independentemente de ações intervencionistas. Ou seja, acreditamos que quando houver expectativa de produção mundial que supere o consumo em mais de 15 milhões (ou até menos) não haverá planos que consigam segurar os preços. É por causa disso que, no segundo semestre de 1999, fomos procurados por um alto funcionário de um país concorrente que queria saber qual o volume de café que o Brasil produziria no ano 2000, pois, dependendo desse volume, seu país anteciparia suas exportações de forma mais agressiva. Aliás, é bom lembrar, foi a supersafra de café ocorrida em 1987 que efetivamente provocou a suspensão das cláusulas econômicas do Acordo Internacional do Café em 1989.
            Outro questionamento que se faz ao plano de retenção é a falta de lógica econômica, ou seja, existe grande probabilidade de o café estocado pelas normas do plano ser vendido no futuro a preço inferior ao de hoje (a não ser que, como já mencionamos, ocorram problemas climáticos de grande magnitude), devido ao mencionado ciclo de preços decrescente, com o agravante ainda de que venha ser onerado por custos financeiros e físicos para o carregamento de estoques e da deterioração da qualidade.
            Com a globalização das atividades econômicas, sobretudo da comunicação, é mais fácil hoje que no passado substituir um fornecedor por outro. O fato de o Brasil ser o maior produtor e exportador de café não lhe garante posição de monopólio diante de produtores menores, mas principalmente não lhe dá o direito de proceder estupidamente (do ponto de vista comercial e de marketing) diante de seus tradicionais importadores, como se estivéssemos vivendo em décadas passadas. Ademais, os maiores riscos de perda de mercado recaem sobre quem tem mais mercado a perder e, portanto, vale um alerta: no ano safra outubro/setembro de 1999/2000, o Brasil reduziu sua participação no mercado externo para 21% (18,7 milhões de sacas), comparado com 27% (22,9 milhões de sacas) observado no mesmo período do ano safra 1998/99, com um agravante que nesse período houve um crescimento das exportações mundiais de 83,8 milhões para 88,0 milhões de sacas, ou seja, um incremento de 5%. É bom lembrar que o volume de café que o Brasil exportou a menos (4,2 milhões de sacas) foi mais que compensado pelo volume a mais exportado por países da América Central, México, Peru, Vietnã e até da Índia. Em termos de receitas cambiais, isso significou perdas de mais de 400 milhões de dólares para o Brasil! Quem deveria ser responsabilizado por essa tremenda façanha? Os importadores que não tiveram a paciência de esperar o Brasil desenhar o plano de retenção? Os produtores que por desinformação ou ingenuidade acreditaram ou ainda acreditam no plano? As lideranças da produção? Ou o governo que parece desconhecer questões elementares relacionadas com a administração pública e que foi embalado pelas análises equivocadas?
            A maior dificuldade na implementação do plano aparentemente reside no âmbito da própria APPC. Isso porque permeia um clima de desconfiança entre os membros do próprio organismo com justa razão: o Brasil foi o primeiro a não cumprir o acordo firmado para 1998/99 devido à grande produção alcançada em 1998, com o agravante ainda de que quem cuidava dessa questão no âmbito do governo brasileiro era nada mais nada menos do que o secretário executivo da APPC, licenciado do cargo para assumir na época a direção da política externa do café no País. Há também uma séria desconfiança com relação ao México. Esse país sacrificaria o acordo do NAFTA com os Estados Unidos, para onde se dirige a maior parte das exportações totais mexicanas, simplesmente para atender o segmento interno do café? Para resumir, dificilmente os países da APPC (como Indonésia, Vietnã, Costa do Marfim, Uganda e Índia, só para citar alguns países) poderiam dispor de recursos para a concretização do plano. As expectativas ficam mais negativas ainda quando se sabe que esses países não dispõem de condições mínimas de infra-estrutura, logística de armazenamento, comunicação e transporte para viabilizar o plano. Assim, embora esses países possam se comprometer com o Programa de Retenção, só o tempo é que poderá dizer se realmente desenvolverão ações práticas em favor da concretização do mesmo.
            Qual seria a lógica para um setor altamente competitivo como a cafeicultura brasileira adotar um mecanismo de retenção de oferta numa fase de expansão da produção mundial? Essa competitividade está altamente correlacionada com a melhoria da produtividade (estimada em mais de 50% nesta década) obtida por meio do cultivo adensado, do desenvolvimento de novas variedades e da procura por áreas mais aptas à cultura no Brasil. Além disso, com a desvalorização do real em 1999, pode-se afirmar com segurança que o Brasil é, depois do Vietnã, o mais competitivo entre os produtores de café, com maior escala de produção. Segundo estudo por nós realizado, é possível produzir café em São Paulo, em sistema adensado, a custos que variam entre US$0,39 a US$0,55 por libra peso. Assim, neste cenário caracterizado por custos de produção competitivos, capacidade de oferta derivada da renovação da cultura e processo de reestruturação produtiva que vem permitindo avançar na profissionalização do setor e na melhoria da qualidade e imagem do produto, a decisão mais adequada seria desenvolver ações pró-ativas no sentido de colocar o produto agressivamente no exterior e não nos encolhermos para novamente reduzir nossa participação no mercado internacional em favor dos nossos concorrentes. Além disso, essa postura defensiva leva a desestruturar as iniciativas empresariais de explorar diferentes e crescentes nichos de mercado de cafés especiais, orgânicos e de origem.
            Como as decisões equivocadas já foram tomadas em nível do Ministério da Agricultura, não resta outra alternativa a não ser sair da armadilha em que se colocou o setor, envolvendo um processo burocratizado, com custos elevados de estocagem e baixo nível de financiamento, com graves prejuízos para a balança comercial do País e, ao mesmo tempo, com medidas contraditórias como a manutenção de leilões para o mercado interno, o que explica em grande parte a tendência de queda contínua das cotações internacionais e nacionais para o produto. Talvez, um meio de fugir desta armadilha seja o Governo Federal mostrar mais firmeza na condução da estocagem, cancelando os leilões no mercado interno, desburocratizando totalmente a estocagem, aceitando a realizada em quaisquer armazéns de terceiros que possam fornecer um certificado de depósito do produto, reduzindo, assim, a movimentação excessiva. Outra medida seria definir um preço de referência para o financiamento de estocagem, talvez R$140,00, com financiamento integral e com disponibilidade de recursos que permitissem uma estocagem de pelo menos 6 milhões de sacas, cerca de 76% a mais que a estocagem estimada pelo plano de retenção para o próximo ano cafeeiro. Este procedimento permitiria disponibilizar no mercado parâmetros claros sobre a política governamental e com isto retomar as exportações. Caso se observasse uma recuperação no mercado nos próximos meses, parte dos financiamentos poderia ser liquidada, até atingir a retenção de 20%, dinamizando o mercado do produto, principalmente numa fase de pós-colheita brasileira. Isto é, somente com uma política objetiva e transparente, com o envolvimento apenas de poucos burocratas que conheçam o setor, permitiria à cafeicultura sair da arapuca em que se encontra.
 

1 Uma versão anterior deste artigo foi publicada no Anuário Estatístico do Café (edição 2000-2001) do Coffee Business.

 

Data de Publicação: 04/12/2000

Autor(es): Luiz Moricochi (moricochi@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
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