De que agricultura familiar estamos falando?

            A revolução da tecnologia da informação e a reestruturação do capitalismo introduziram uma nova forma de sociedade - a sociedade em rede - caracterizada pela globalização das atividades econômicas e sua forma de organização, bem como pela flexibilidade e instabilidade do emprego e a individualização da mão-de-obra. É também marcada pela transformação das bases materiais da vida, alterando profundamente as noções de tempo e espaço. No âmbito da economia, observa-se a partir do pós-guerra uma aceleração de crescimento que supera o que foi verificado em toda a história mundial anterior.1
            Por um lado, a globalização impõe padrões comuns, difundindo uma matriz produtiva baseada na tecnologia que apaga as distâncias. Por outro, propicia reações locais que nascem marcadas pela ampliação da comunicação e pelas novas práticas sociais. As transformações das bases materiais da vida deixam marcas locais que, mesmo virtuais, mudam as formas de ação e as orientações básicas das culturas .2
            Não existe um padrão universal para definir a 'agricultura familiar' que identifique de forma clara a qual estamos nos referindo. À referência dessa expressão pode se pensar na concepção utilizada pela política setorial brasileira; à destinação do crédito; a alguns indicadores de escala de empreendimentos; à exploração pessoal do imóvel pelo agricultor e sua família; ao tamanho das lavouras; à renda bruta anual obtida; à quantidade produzida; à produtividade da terra; à intensidade do uso da terra e do trabalho; aos contingentes beneficiários dos programas de financiamento dirigido.
            O conceito de agricultura familiar remonta aos séculos XVIII e XIX, como uma forma de agricultura que evoluiu gradualmente na Europa. Inicialmente, foi estruturada por poucos proprietários e grande contingente de trabalhadores assalariados e, posteriormente, em sua maioria por pequenos proprietários. Pouco a pouco os camponeses foram se adaptando a uma nova estrutura onde predominavam estabelecimentos com dimensões adequadas à exploração pelo trabalho da família1.
            O modelo europeu de agricultura difundiu-se no mundo durante o século XIX, influenciando a legislação agrária de países como os Estados Unidos e o Japão. Tal modelo estava associado a uma agricultura baseada na identidade composta de uma família, um estabelecimento, uma atividade, uma renda, um patrimônio com certa homogeneidade quanto ao tamanho dos demais estabelecimentos e à forma de produção.
            A revolução tecnológica e o forte impacto na produção e produtividade sobre as áreas a serem cultivadas pela família levaram a um intenso êxodo rural a partir do século XX. Na segunda metade do século passado, desenvolvem-se novas tecnologias agropecuárias que intensificam um crescimento sem precedentes na produção mundial e alteram inteiramente o modelo clássico de agricultura familiar. Essas dramáticas transformações promovem o surgimento de um modelo de agricultura familiar completamente diverso do modelo clássico.
            A partir dos anos 80, a agricultura familiar sobrevivente guarda poucas semelhanças com o modelo inicial. Essa manutenção se dá graças à capacidade de adaptação e inserção nas novas oportunidades apresentadas pela sociedade.
            Ao considerar que a existência de grupos de qualquer ordem (econômica, social, política, cultural, sexual, entre outras) depende da sua organização social, pode se avaliar a importância e a necessidade de se aprofundar o conhecimento sobre os rumos que estão tomando tais mudanças. E não apenas os rumos, mas também sobre quais elementos se apóia a construção de um perfil, de uma conformação social, cultural ou econômica.
            É corrente a afirmação de que atualmente se está diante de um deslocamento (seja no mundo social e cultural, seja em si mesmo) ou de uma fragmentação de identidades promovida, entre outros, pela globalização, pela informatização e intensificação das comunicações e pela complexificação das relações sociais locais e internacionais.
            Em outros termos, as identidades modernas estariam entrando em colapso em função de uma mudança estrutural transformadora das sociedades contemporâneas. As conformações de raça, etnia, gênero, classe e sexualidade, que no passado forneceram ancoragem sólida aos indivíduos sociais, estariam se fragmentando, mudando nossas identidades e abalando a representação que temos de nós mesmos como sujeitos integrados. Constituir-se-iam assim num processo de perda de um sentido em si. O que se supunha como fixo, coerente e estável estaria se deslocando pela experiência da dúvida e da incerteza.
            A identidade, se entendida como a origem de significado e experiência de um povo, é o elemento fundamental que estabelece alguma forma de distinção entre o eu e o outro, nós e eles. É uma construção social que oferece ao indivíduo uma auto-identificação, uma auto-definição, um auto-conhecimento não dissociado da necessidade de ser conhecido de modos específicos pelos outros. É a partir dessa auto-definição que os indivíduos sociais tomam suas posições dentro das sociedades, que estabelecem suas relações econômicas, sócio-culturais e ambientais. É a partir daí que se organizam, social e politicamente.
            Portanto, uma alteração na forma de pensar a si mesmo altera profundamente as relações que se estabelecem entre si (modo de vida), localmente, globalmente e em suas relações com a natureza.
            Identidade 4 é um fenômeno que surge da relação entre indivíduo e sociedade, como algo que se constrói através das práticas, conhecimentos e envolvimentos pessoais, em contínua articulação significativa entre indivíduo e contexto social. Através dela, podem se construir núcleos de resistência à homogeneização ou constituir-se pontos de partida para as mudanças sócio-culturais. Dessa perspectiva, também pode ser vista a expressão 'agricultura familiar'.
            A investigação das possibilidades de projetos individuais e coletivos passa pelo estudo dos modos como se dão as negociações e relações que se estabelecem entre indivíduos e grupos e o processo de construção das identidades envolvidas nesse processo. Em última análise, passa pela ação social desses atores e pelos territórios, concretos ou virtuais, sobre os quais se assentam as relações sociais e a produção agrícola ou outras atividades econômicas.
            A acelerada difusão de uma racionalidade econômica e política modifica os núcleos substanciais das organizações sociais, como a família, a comunidade, a economia familiar, o trabalho artesanal, as relações estáveis de emprego, as religiões e até as classes sociais, fragmentando-os e tornando-os precários e provisórios.
            Quando a globalização aparece como um fato consumado, imposto às sociedades e territórios, instala-se uma nova forma do uso do território, modificando seus conteúdos quantitativos e qualitativos e alterando as relações mantidas sobre este. As tensões reveladas pelo território resultam num conjunto de forças agindo nos lugares, podendo se instalar a desordem com o aumento das tensões. Corre-se o risco, então, do comprometimento da união (territorial nacional) se não houver compromisso entre os interesses dos atores envolvidos apenas no progresso material e na sociedade nacional 5.
            O processo de globalização e seus impactos sobre o território colocam para todos a necessidade de buscar entendimento das novas estruturas econômicas e políticas, construídas sobre novas realidades e processos que exigem uma revisão de seus elementos fundantes e princípios norteadores.
            O novo sistema técnico, que constitui a base do sistema produtivo contemporâneo e as feições geográficas delineadas, incita o estudo das novas configurações espaciais, sobre as quais se desenvolvem as relações sociais, as novas territorialidades.
            Na etapa atual do País, do capitalismo controlado pelo capital financeiro e sem investimentos na indústria, as classes e grupos sociais subalternos se misturaram, perderam a configuração nítida de interesses particulares e, neste sentido, carecem buscar novas identidades.
            Indagações e preocupações, associadas ao contato com agricultores familiares durante experiências de pesquisa e, mais recentemente, no contato com agricultores familiares situados em unidade de conservação, permitiram verificar6 que, paulatinamente, eles vêm desenvolvendo atividades outras que não a agricultura. Inserem-se, assim, num cenário que se poderia chamar de multifuncionalidade, em detrimento da própria atividade agrícola. A questão da posse da terra ainda é um projeto perseguido com muito empenho, apesar dos seus rendimentos atualmente provirem mais significativamente das outras atividades que desenvolvem, relacionadas com o turismo.
            Para se apropriar da expressão 'agricultura familiar', é necessário antes identificar os diferentes universos sobre os quais se fala, investigando o modo como estão os agricultores experimentando novas formas de relação social. Isto envolve, inclusive, o desempenho de atividades que transcendem a esfera da agricultura, isto é, agricultores que não se reduzem ao desempenho tradicional. Sem isto, estaremos nos referindo a uma entidade isomorfa.
            É de fundamental importância a definição das condições sociais em que se constrói a identidade e se insere o 'agricultor familiar', de maneira a permitir uma antecipação de possibilidades de concretização dos seus projetos e expectativas através da criação de políticas públicas direcionadas a núcleos 'perfilados' de agricultores.
            Nesse sentido, concordamos com a afirmação de que:

'A preocupação legítima com a agricultura familiar tem custos e demanda por investimentos públicos em pesquisa; em programas de capacitação em gestão da produção e de negócios ('empreendedorismo no campo'); no apoio às formas de organização que melhor aproveitam suas vantagens em explorar novos mercados de produtos e serviços, agrícolas e não agrícolas; e na provisão de recursos para formação de capacidade produtiva.'7

            Como a identidade não é algo fixo, imutável - ao contrário, resulta de um processo constante de construção e reconstrução -, é necessário analisarem-se os efeitos e as características que as categorias adquirem na sociedade contemporânea, no jogo intenso de papéis sociais associados às experiências e aos níveis de realidades diversificados, eventualmente conflituosos e contraditórios. Cremos ser esta a razão da situação atual na utilização da expressão 'agricultura familiar' e a diversidade de significados de que esta se tem revestido.
            No debate sobre o que é 'agricultura familiar', útil seria considerar, para fins de política pública dirigida, a diversidade do que atualmente se apresenta como 'agricultores familiares': aquelas unidades de produção em que se usa intensivamente os fatores de produção; a grande maioria que continua enfrentando restrições e dificuldades para sobreviver em mercados cada vez mais competitivos e exigentes. Aqueles - mais de um milhão - que nos últimos dez anos têm sido expulsos do campo e certamente já não encontram ocupação nos meios urbanos.
            Indicadores desses resultados são os conflitos agrários e a tensão social crescente no campo e na cidade. O desafio está numa solução estrutural para a questão econômica e social do país onde é fundamental a articulação dos atores sociais envolvidos e comprometidos com a agricultura familiar. Em outros termos, é necessária a atuação de movimentos sociais, dos ministérios, dos governos estaduais e municipais, de agentes financeiros, de ONGs e outros.8
            A manutenção do homem no campo com qualidade de vida, além de evitar o êxodo rural, reduz a pressão por emprego e proporciona o bem estar social nos centros urbanos. A agricultura familiar com toda a sua diversidade está representada por 24 milhões de pessoas, o equivalente a 16% da população brasileira. É responsável pela produção da maior parte dos alimentos ofertados aos demais 150 milhões de brasileiros, ou seja, 87% da mandioca, 67% do feijão, 49% do milho, 46% do arroz, 54% do rebanho bovino de leite, 40% de aves e ovos e 58% dos suínos.9, 10

___________________
1 Ver Veiga, J.E., Desenvolvimento Agrícola. Edit. Hucitec, Edusp. São Paulo, 1991
2 Santos Boaventura de Sousa, Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade, 2a.edição 1996.
3 Castells, Manuel . O poder da identidade: economia, sociedade e cultura. São Paulo, Paz e Terra, 1999.
4 Berger Peter L. e Luckmann T., A Construção da Realidade: Tratado de sociologia do conhecimento, Petrópolis, Editora Vozes, 15a Ed. 1998
5 Santos, Milton O País distorcido: O Brasil, a globalização e a cidadania, São Paulo, Publifolha, 2002.
6 Panzutti, N.P.M, Mulher Rural Eminência Oculta (tese Mestrado) IFCH/UNICAMP 1992 e A Caminho da terra: a mata (tese Doutorado), IFCH/UNICAMP, 2002
7Buanain Antonio Márcio; Silveira, José Maria. Agricultura familiar e tecnologia no Brasil.
www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/junho 2003
8 Guanziroli , C.E. (Coord) Novo retrato da Agricultura Familiar. O Brasil Redescoberto, INCRA/FAO, Brasília 2000
9 www.unitins.br/~unitinsagro/pages/agriculturaf.htm. Projeto FORTER
10 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-90/2005 
 

Data de Publicação: 25/10/2005

Autor(es): Nilce da Penha Migueles Panzutti (panzutti@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor