Feijão: alargamento de horizontes em três gerações de lavradores

            As análises parecem não dar conta da profunda transformação da produção de feijão desde os anos 1970. Muitas considerações que tomam essa lavoura como padrão de plantações de subsistência desconsideram o fato de que as mudanças foram muito além do denominado espaço produtivo. 
           Um contato com três gerações de famílias de lavradores de feijão do município paulista de Itaberá permite caracterizar a realidade produtiva, familiar, social e cultural de avós, pais e netos.
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           A primeira característica encontrada foi o tamanho das famílias em diferentes gerações. Os avós tinham de 6 a 9 filhos, enquanto os pais tiveram de 3 a 5 filhos e os netos de 1 a 2 filhos (ou planejam ter no caso dos mais moços). Essa dimensão de famílias menores não apresenta somente impactos no crescimento vegetativo da população, mas tem relação direta com a capacidade de produção. 
           No passado, famílias numerosas faziam “grande movimento”, explicam os avós, gerando imensas áreas agricultadas em inúmeras culturas. Os avós tocavam as lavouras com tração animal (rememoram parelhas de mulas com muita força física e destreza). Já os pais trabalhavam com trator novo ou usado e os netos compraram modernos tratores traçados de alta potência. 
           Assim, os netos lavram mais terra que os avós faziam no passado (cultivam toda a área de suas propriedades e alguns ainda arrendam novas terras) devido à potência do parque de máquinas que adquiriram. Em linhas gerais, encontra-se um paralelo quase direto entre redução do tamanho familiar e, no sentido inverso, o crescimento da potência instalada do rendimento operacional do parque de máquinas disponível.
           A segunda característica consiste no nível de educação formal entre as três gerações. Os avós quando muito tiveram acesso à educação primária, equivalente à metade do primeiro grau atual (muitos exibem com orgulho o “diploma de grupo” que era uma conquista no seu tempo), em escolas de sítio. A freqüência era entremeada com ausências para atuar nas tarefas mais exigentes de mão-de-obra de plantio e de colheita. 
            Isto porque não se contratava pessoal de fora, salvo o caso de alguns meeiros. O tamanho das lavouras era definido pela possibilidade de mobilizar os filhos para a produção. A 'separação' de pais e irmãos dava-se no momento em que os filhos já grandes permitiam ao novo lavrador “tocar sozinho” suas roças. 
            Os filhos terminavam o equivalente ao primeiro grau e alguns até o segundo grau (antigo colegial). Antes das lavouras tiveram experiências em trabalhos urbanos como os serviços bancários nos anos 1970s e 1980s, voltando à lavoura quando se casavam. Interessante nessa passagem de geração é que, dos filhos dos avós (6 a 9 filhos), apenas 1 a 3 (em média) voltaram para a lavoura. A maioria deles progredia em empregos urbanos em centros maiores, muitos dos quais tiveram inclusive acesso à universidade. 
            Aos netos, a realidade se mostra bem mais avançada e todos completam o segundo grau. Dentre a descendência dos filhos, apenas 1 neto (no máximo 2) ficou na lavoura, enquanto muitos outros trilharam o caminho de se transformarem em profissionais liberais (alguns em empregos públicos). Entre esses netos, um número significativo (36% do universo visitado) tem curso superior completo e outra parcela (25%) freqüenta cursos especializados (por exemplo, curso superior de agronegócios em faculdade particular de cidade vizinha). 
            Interessante mostrar as fontes de acesso à informação tecnológica das três gerações. Os avós informavam-se por intermédio dos “vendedores de adubo e defensivos”; os pais, pelos agrônomos das “casas da lavoura”; e os netos, pelos “programas de televisão e a internet”.
            Outra coincidência detectada na prosa com as três gerações era a de que os vendedores ensinavam os avós todas as primeiras práticas, mas destacavam com clareza a presença ativa dos agrônomos do Governo. Por exemplo, para que trocassem o feijão rosinha e o bico de ouro pelo feijão carioca na virada dos anos 1970s. Os compradores, por sua vez, não queriam aceitar o novo feijão e pagavam menos por ele sob os mais diferentes argumentos. Por fim, acabavam por aceitar o feijão carioca que pintava menos e produzia muito mais. 
            Aos pais, a grande fonte de informação eram os agrônomos regionais, dos quais eles recordam os nomes. A instituição mais lembrada pelo presença tecnológica é o Instituto Agronômico (IAC); tanto assim que alguns guardam manuais antigos como o Boletim 200 (que ainda servem, como asseveram os mais fiéis). 
            Para os filhos, a instituição que vem diretamente à memória é a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), da qual colecionam folhetos e materiais. Mas não há a mesma paixão dos pais pelas instituições, na medida em que acumularam experiências que transcendem o universo nacional. Mais da metade deles (57%) passou pela experiência de ter realizado estágio em fazendas norte-americanas cujos programas têm duração de semestre ou ciclos produtivos inteiros. 
            A troca de informações com agropecuaristas norte-americanos e a alusão a mecanismos de políticas públicas estadunidenses, bem como ao profissionalismo como eles encaram a agropecuária, revelam-se de forma nítida na descrição das experiências de vida produtiva dos netos. Noutras palavras, os netos são lavradores de feijão regionalizados, porém globalizados.
            Na verdade, entrou-se, assim, na terceira característica fundamental que diferencia a realidade dos avós daquela dos pais e dos netos. Trata-se do horizonte geográfico do conhecimento vivido nas suas experiências de vida. 
            Os avós visualizavam apenas o horizonte dos bairros rurais onde fincaram raízes e organizaram suas vidas; ou seja, os campos de futebol, as visitas às vendas rurais (casas de comércio) e as festas anuais da igreja do bairro, pois os deslocamentos para a cidade (sede do município) eram os mais longos. Alguns poucos se moviam até as cidades vizinhas. 
            A alusão a São Paulo era o mesmo que se referir a uma localidade distante, pois na realidade do final dos anos 1960s o asfalto ia até Itapetininga (SP). Assim, levava-se quase um dia para ir de Itaberá a São Paulo (menos do que nos anos 1950s, quando eram dois dias de viagem em estrada de terra, como recordam alguns). Na comunicação, os avós faziam parte da geração do rádio. 
            Os filhos já transcenderam os limites dos bairros rurais (muitos bairros rurais simplesmente desapareceram e com eles as vendas e mesmo as igrejas; também a maioria das escolas foi extinta), conheceram bem as cidades vizinhas e têm facilidade de se movimentar em São Paulo. Nos anos 1980s, o asfalto em pista simples chegou a Itaberá, o que reduziu o tempo total de viagem para cinco horas (sem pressa, pontuam alguns). Estão envolvidos com as festas anuais da igreja matriz e com as reuniões sociais dos clubes e dos bares da sede do município onde moram, ainda que mantenham atividade produtiva no campo. 
            Os netos já têm uma relação mais globalizada, com férias na praia, muitas vezes com idas ao exterior (muitos conhecidos e parentes estão na Austrália, na Europa e nos Estados Unidos). A capital paulista corresponde a um “pulinho”, com pista dupla até Capão Bonito (em duplicação até Itapeva), levando em média 3 horas e meia de viagem. Essa geração dos netos corresponde à geração da internet. 
            A questão pontual a se enfatizar é o fato de que as características destacadas têm relação direta com o padrão da produção de feijão. Nesse espaço de três gerações, que em média envolve os últimos 40 anos, passou-se da policultura para a venda de excedentes, para a monocultura com a profissionalização produtiva, para o empreendimento de negócios com a profissionalização gerencial. 
            Em outras palavras, a redução do número de famílias, para essas famílias onde se encontram três gerações de produtores de feijão, correspondeu ao vertiginoso crescimento da mecanização de processos, com o que menos gente produz muito mais. Por outro lado, num salto significativo, passou-se dos bairros para o mundo, num processo de globalização cultural sem paralelo propiciado pela revolução da comunicação em tempo real que reduziu de forma brutal as distâncias entre o universo mais amplo e o universo particular de cada agente produtivo. 
            Da aldeia rural, passou-se a viver na aldeia global; ainda que especificidades marquem seu cotidiano e que, do ponto de vista cultural, uma certa reversão da ruralidade possa até mesmo ter ocorrido. 
            Essa recidiva de ruralidade não corresponde a uma simples volta ao passado. Dos avós aficionados pela música sertaneja no rádio de Tonico e Tinoco e de Cascatinha e Inhana, passou-se para os filhos que, em muitos casos, chegaram mesmo a encarar a Jovem Guarda e o Rock and Roll dos Beatles; e voltou-se aos netos que glorificam Leandro e Leonardo, Zezé de Camargo e Luciano, Chitãozinho e Xororó, tendo o paraíso do country em Nashiville como catedral da cultura. 
            Não há como lançar juízo de valor sem entrar em avaliação de cunho pessoal, com o que simplesmente o que se tem a pontuar corresponde a uma observação dos avós sobre o assunto. Trata-se “dos sinais dos tempos”.E esse tempo que corre mais rápido com certeza não tem a mesma velocidade para todas as pessoas, mas isso não retira a sua condição de ditar o ritmo das mudanças, para o bem ou para o mal, dependendo de que ângulo se esteja focando a realidade. 
            As referências institucionais e a relação com os espaços geográficos alteraram-se de forma radical, e isso tem relação direta com as condições objetivas da produção de feijão, pois os novos produtores de feijão são cada vez mais cidadãos do mundo. Em função disso, as políticas públicas sofreram e devem sofrer mudanças, as instituições e suas programações devem ser redesenhadas... 
            Enfim, a sociedade moderna, exatamente por ser produto de instituições do passado, exige instituições compatíveis com o novo tempo. Ainda que não possa ser uma realidade de toda estrutura produtiva de feijão, há de se ter sempre presente que a diferenciação consiste no motor das mudanças.E o futuro será produto da ação dos netos, enquanto avanço do trabalho dos pais e do pioneirismo dos avós.2
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1 Refletindo sobre esse quadro, em 18/07/2005, realizaram-se entrevistas intencionais com famílias de lavradores do imenso universo da produção de feijão de Itaberá (SP), no Sudoeste Paulista, a 340 km da capital do Estado de São Paulo, no centro da maior região paulista produtora de feijão. Foram identificadas sete famílias representativas de três gerações vivas, que foram visitadas com o intuito de colher informações. Em entrevistas abertas, procurou-se informar sobre características que possibilitassem estruturar um quadro geral, ainda que não conformado enquanto estatística amostral, da realidade das mudanças na produção dessa relevante cultura alimentar. Levou-se unicamente em conta as características similares encontradas nesse universo.
2 Artigo registrado no CCTC-IEA sob número HP-64/2005 
 

Data de Publicação: 18/08/2005

Autor(es): José Sidnei Gonçalves (sydy@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor