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O Papel Complementar Das Bolsas De Parceria E Arrendamento Na Questão Agrária Brasileira
Desde
1990, estabeleceu-se uma via complementar de acesso à terra, ainda que de forma
precária, através dos sistemas de arrendamento e parceria. Foram criadas algumas
bolsas de parceria e arrendamento rural a partir da idéia original de José
Humberto Guimarães1 em Uberaba. Apesar de contar
com o apoio de setores importantes das classes proprietárias agrárias desde o
seu início, a idéia e as ações esbarraram em resistências de muitos setores dos
próprios proprietários.
Essa idéia da bolsa de arrendamento rural foi aperfeiçoada por uma equipe do
Centro de Estudos Agrícolas (IBRE/CEA) da Fundação Getúlio Vargas. O objetivo
era criar 'alternativas complementares ao programa de reforma agrária, com
implantação totalmente descentralizada e desenvolvida por prefeituras,
secretarias municipais de agricultura, sindicatos de produtores rurais, ONGs, ou
seja, instituições que estejam interessadas em desenvolver alternativas baratas
para promover a renda de trabalhadores sem terra ou pequenos produtores.'2.
A proposta foi apoiada pelo governo federal através do Ministério do
Desenvolvimento Agrário, que encaminhou medida provisória para criação do
programa de arrendamento rural Viva Terra3,
regulamentado pelo decreto n.º 3.993, de 30 de outubro de 2001, que, por sua
vez, regulamentou o artigo 95-A da Lei 4.504, de 30 de novembro de 1964, e
instituiu o Programa de Arrendamento Rural para a Agricultura Familiar. O
programa Consórcios e Condomínios Rurais de trabalhadores sem Terra para
Arrendamento e Parcerias, concebido pela equipe do IBRE/CEA, foi destacado, em
janeiro último pelo Banco Mundial, por sua gestão e desenvolvimento
bem-sucedidos.
Mas não só para produtores familiares e trabalhadores sem terra o arrendamento
de terra pode ser uma alternativa. Em regiões de cerrado, por exemplo, pode
representar um custo unitário menor na produção em grande escala, como é o caso
do Estado de Mato Grosso4, já que não está
associado a um equivalente valor de capital imobilizado na propriedade por parte
do produtor. Embora não se confirme a opinião de que o arrendamento de terra
seja importante para a produção de soja, existem análises interessantes sobre
arrendamento de terra para produção de grãos (algodão, arroz, milho e soja) e
renovação de pastagens em regiões do Triângulo Mineiro e do Mato Grosso do
Sul5. Neste caso, ressalte-se a necessidade da
atuação das políticas públicas harmonizadas a uma política ambiental bem
definida, não apenas na recuperação de áreas degradadas como também no
estabelecimento de algum critério para que o arrendamento não se torne uma via
de exploração de áreas ainda preservadas.
Levanta-se então a seguinte questão: Se a idéia é boa e antiga, se há produtores
sem terra querendo arrendar terras, se há iniciativas particulares e oficiais,
por que várias gestões de governos não conseguiram levá-la adiante?
Até o Plano Real, com a inflação elevada e crescente, a propriedade da terra
podia ser utilizada, por alguns setores, como reserva de valor, sendo sua
utilização de forma produtiva e social praticamente desnecessária para esses
proprietários. Isto reverteu-se com a queda geral nos preços dos ativos
fundiários no país e esses proprietários foram obrigados a tratar com maior
seriedade o Imposto Territorial Rural (ITR) cuja arrecadação passou para a
Receita Federal. Mas sempre faltou oferta para atender à demanda por terra para
cultivo.
Um obstáculo fundamental é que a maioria dos proprietários de terras sem
utilização agrícola não arrenda para pessoas, ou mesmo grupos de pessoas, que
não sejam por eles conhecidas há tempo e que não sejam da sua região. A atitude
mais comum entre esses proprietários é a de serem capazes de arrendar suas
terras até mesmo sem contrato algum para pessoas ou famílias conhecidas, só
assinando-o devido à exigência dos bancos para viabilizar a concessão das cartas
de anuência na obtenção de financiamento pelo arrendatário ou parceiro. Para
estranhos, continuaria a haver uma sólida resistência.
A solução para desfazer este nó poderia ser o estabelecimento de negociações
entre entidades das partes interessadas, no sentido de se firmar compromissos
mútuos entre as organizações que congregam aqueles que buscam terras para
trabalhar e os que as tem disponíveis, garantindo aos proprietários que, uma vez
arrendadas e de acordo com a legislação vigente, não correriam qualquer risco de
permanência ou ocupação, após terminado o contrato, mesmo com a disposição do
proprietário de continuar arrendando, no caso, para outros. Em síntese, os
direitos legais de propriedade seriam respeitados integralmente. Por outro lado,
esses contratos deveriam ser realmente de arrendamento. A parceria, por sua vez,
não deve caracterizar-se como falsa parceria, o que ocorre eventualmente6.
Este caminho talvez possa ser aberto através de negociações mediadas pelo
Estado, estabelecendo um PACTO que beneficie ambas as partes. Esta alternativa,
entretanto, não deve deixar de lado a realização de uma reforma agrária que
persiga outros objetivos econômicos e sociais além da produção agrícola em si.
Isto porque o arrendamento e a parceria, apesar de resolver o problema de
ocupação de agricultores que aceitam esta forma de relação de produção,
apresentam alguns aspectos negativos. Um deles é o fato de o agricultor parceiro
ou arrendatário ter de pagar pelo uso da terra para produzir, o que eleva seus
custos operacionais de produção. Outro refere-se à falta de estímulo à
realização de investimento no estabelecimento agrícola, uma vez que, não sendo
proprietário, não tem garantias de usufruir das melhorias até sua total
depreciação e nem direito a qualquer tipo de financiamento para investimento.
Segundo o próprio coordenador da equipe do IBRE/CEA que concebeu o programa
Consórcios e Condomínios Rurais de Trabalhadores Sem Terra para Arrendamento e
Parceria, estudo recente indica que um aumento de 10% nos gastos com capital
fixo e insumos eleva a produção em 5,2%, enquanto que, se este aumento for
aplicado apenas com insumos ou em quantidade de trabalho ou em crescimento de
10% da área dos estabelecimentos, a produção se elevaria em apenas 3,5%, 2,7% e
2,3%, respectivamente7. Nesse sentido, o que
pesa contra o arrendamento é que ele não resolve a falta de acesso à titulação
da terra, que impede o acesso ao crédito para investimento e não estimula outras
melhorias na propriedade.
Ainda existem outros fatores que não favorecem inteiramente à prática do
arrendamento: são aqueles relacionados com moradia, segurança, estabilidade,
criação de mercados e potencialidades locais, que estão se tornando cada vez
mais estratégicos para as políticas econômicas e sociais e que, através dos
arrendamentos, não se viabilizam.
Isto posto, a bolsa de arrendamento se coloca como uma alternativa para a
facilitação de contratos, mas, conforme o apresentado pela própria equipe do
IBRE/CEA, se trata de uma forma complementar ao programa da reforma agrária
necessária. Essa forma de acesso à terra, embora não substitua a necessidade de
realização de uma reforma agrária democrática no país, pode contribuir para
minimizar a dificuldade de acesso à terra por parte daqueles que, tendo
capacidade e querendo produzir, não dispõem desse meio para tal e ademais pode
vir a minimizar as restrições de capital que se abatem sobre a agricultura
brasileira.
1 Hoje um dos membros do Programa Viva Terra! -
Programa de arrendamento e Parceria para Consórcios e Condomínios de
Trabalhadores Sem Terra e Produtores Rurais premiado pelo Banco Mundial.
2 Agroanalysis,
fevereiro de 2002:07
3 Os programas de Bolsa de Arrendamento e Viva
Terra podem ser vistos nos sites http://www.bolsadearrendamento.com.br/menu_ebody.asp?I=5&P=1#5 e http://www.programavivaterra.fgv.br/arquivos.html
4
Rezende, Gervásio Castro de, 'Ocupação Agrícola e Estrutura Agrária
no Cerrado: O Papel do Preço da Terra, dos Recursos Naturais e da
Tecnologia' setembro 2002 (mimeo).
5 Romeiro, A e B. P.
Reydon, coord., O Mercado de Terras. Brasilia, IPEA, Estudos de Política
Agrícola n.13, Março de 1994
6 Receita Federal - Perguntas e Respostas.
Pergunta 086 - O que vem a ser a falsa parceria? Em alguns regiões do
País, entende-se ou dá-se o nome de 'parceria' a um contrato de trabalho
rural, no qual o trabalhador percebe salário, parte em dinheiro e parte
percentual da lavoura cultivada ou do gado tratado. Neste caso, a direção
dos trabalhos, o custeio e consequente risco do empreendimento são de
inteira e exclusiva responsabilidade do proprietário do imóvel rural.
Portanto, trata-se de falsa parceria ou contrato de trabalho rural.
Disponível em http://www.receita.fazenda.gov.br/srf.www/PessoaJuridica/itr/2001/PergResp/pr070a086.htm
RECEITA FEDERAL, 2001. Acessado em
8/11/02 .
7
Agroanalysis, abril de 2002.
Data de Publicação: 13/11/2002
Autor(es):
Nilce da Penha Migueles Panzutti (panzutti@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor
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