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Sobre distribuição de terras e reposição do patrimônio agrário
A
modernização acelerada da agricultura, associada à internacionalização das
economias, dificulta cada vez mais a integração de populações rurais que vivem à
margem do desenvolvimento econômico já há longo tempo. 1 PANZUTTI, Nilce P. M., A Caminho da Terra: a mata 2002 247p. Tese (doutorado) – Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo.
Alterações nessa tendência dependem da obtenção de alternativas para os
problemas da exclusão, partindo-se do conhecimento da realidade específica
dessas populações, com vistas a uma sustentabilidade que integre as esferas
ecológicas, sociais, culturais, econômicas e políticas.
Com a modernização agrícola, ocorrida de forma heterogênea no País,
aprofundam-se as relações intersetoriais, com o uso crescente dos insumos
modernos produzidos industrialmente (tratores, adubos químicos, inseticidas,
fungicidas e herbicidas); alteram-se as relações de trabalho; intensifica-se a
mecanização, que passa a atuar no processo produtivo desde o plantio até a
colheita; substitui-se não só a força de trabalho, mas também as habilidades
manuais do trabalhador, embora se promova um salto qualitativo da produção e da
produtividade agrícolas.
Nesse processo em que o governo teve importante participação, foram lançados
diversos instrumentos de política agrícola com o objetivo de elevar a produção e
a produtividade da agricultura. No entanto, manteve-se a estrutura agrária já
existente, o que beneficiou em especial, médios e grandes produtores rurais.
Os efeitos dessas transformações de longo espectro, no entanto, alcançaram de
forma diferenciada as populações mais periféricas ao sistema. Como exemplo,
tem-se o caso do núcleo de Itinguçu (SP), situado dentro dos limites de uma
Unidade de Conservação, a Estação Ecológica Juréia-Itatins.
Em estudo1 realizado com esse agrupamento social, encontrou-se um paralelo entre a trajetória dos moradores de Itinguçu e as transformações2 ocorridas com o processo de expulsão dos agregados e parceiros do latifúndio no final do século XIX, quando agregados e posseiros saíam em busca da sobrevivência. Apreendeu-se como se transformaram as formas essenciais de sociabilidade anteriormente existentes (relações familiares, vicinais, entre bairros e com o centro urbano) baseadas na complementaridade e interdependência, calcadas na organização da produção que pouco a pouco vai se enfraquecendo, se desorganizando, dando lugar a um empobrecimento que chega a um estado de anomia3
.
A noção de anomia guarda estreita relação com a noção de alienação, referindo-se
à idéia de um desregramento fundamental das relações entre o indivíduo e a
sociedade. Há anomia quando as ações dos indivíduos não são mais reguladas por
normas claras e coercitivas e quando a complexificação dos sistemas sociais
ocasiona uma individualização crescente dos membros da sociedade e, por isso,
efeitos crescentes de 'desregramento'. A noção aqui é usada no sentido de
situações em que há dúvida e incerteza quanto aos fins socialmente valorizados.
Partindo de dados colhidos em campo, levantou-se a organização social dos residentes de Itinguçu. Estabeleceram-se o perfil e a dinâmica das atividades de produção e comércio, no processo de transformação da condição dos posseiros residentes no bairro desde a década de 70 em moradores da Unidade de Conservação a partir de
1986.
Constatou-se que as mudanças havidas nas famílias residentes ocorrem não apenas
pela criação da Estação Ecológica mas também pela intensificação das relações do
núcleo com o mundo moderno, pela proximidade da cidade balneária de Peruíbe e
pela visitação do local onde se encontra a Cachoeira Paraíso – ponto turístico
que em feriados prolongados chega a receber 6.000 visitantes num período
aproximado de quatro dias.
Da análise da alteração do modo de vida e das relações sociais dos moradores de
Itinguçu, constata-se a desorganização sócio-econômica do grupo. Com as
dificuldades na produção agrícola, decorrentes das restrições impostas pela
legislação da Estação - proibição da entrada de novas espécies vegetais e
animais, adubação, aumento da área de plantio, proibição da utilização de
inseticidas e herbicidas na produção agrícola, associadas às dificuldades de
obtenção de uma produção compatível com as exigências do mercado agrícola e mais
as dificuldades relacionadas à comercialização ( mercados distantes, ausência de
meios de transportes para a colocação de seus produtos em outras áreas, a maior
facilidade de obtenção de renda com as atividades do turismo) -, observou-se o
desinteresse e o abandono da produção agrícola. Com isso, a vida familiar,
calcada na produção familiar agrícola, entra em decadência tanto quanto a
solidariedade de vizinhança, que tinha por esteio a associação das famílias.
A desagregação familiar e a desestruturação social observada induzem a população
para uma situação anômica, em que existe uma instabilidade das regras sociais do
grupo e a autoridade do chefe da família é questionada e/ou ignorada.
A falta de perspectiva dos mais jovens no que se refere à obtenção da terra,
seja para plantar, seja para morar, leva à busca de colocações em atividades
informais nos centros urbanos, ou seja, novamente a migração. Nesse cenário,
observou-se, além do redirecionamento das atividades econômicas para o comércio
local, o desenvolvimento de outras atividades informais (guarda de carros e
guias turísticos) desempenhadas principalmente por crianças.
Com a criação da Estação Ecológica, a transferência do direito à transmissão do
patrimônio, um dos pilares da autoridade do chefe de família, passa para a
Administração da Estação Ecológica e com isso rompe-se o elo forte da autoridade
na relação pai-filho. Rompe-se igualmente a coesão familiar anteriormente
existente. Ficam comprometidas as regras camponesas da distribuição de terra e
de reposição do patrimônio que assegurava a realização da condição camponesa às
gerações que atingiam a maturidade e buscavam a constituição de novo núcleo
familiar.
Nesse aspecto, um fator externo - as regras impostas pelo Estado - restringe as
possibilidades, contribuindo para que se desloque a procura de alternativas para
fora da família. Proliferam, então, as alternativas individuais de
sobrevivência, situadas preferencialmente no âmbito não-agrícola. As
expectativas que aí se colocam apontam para a migração e desagüam nas cidades.
As constatações mencionadas reforçam a convicção de que é cada vez mais premente
a necessidade de se levar em consideração as especificidades agrárias locais na
elaboração de planos e propostas governamentais.
O impacto decorrente da criação da Estação se observa no deslocamento das
atividades agrícolas para o comércio, verificado recentemente em Itinguçu.
Diante dos obstáculos à produção agrícola, os moradores procuram outras formas
de obtenção de renda.
Os moradores de Itinguçu, no entanto, são uma face tangencial do amplo consenso
existente entre as classes sociais no campo brasileiro, onde o latifúndio ainda
é a base da permanência da forma de dominação reatualizada pelo 'agrobusiness'.
A distribuição de terras, juntamente com a aplicação de políticas públicas
direcionadas para as populações rurais específicas, pode ser um complexo, longo,
mas profícuo caminho no sentido da 'velha' idéia da fixação do homem ao campo.
2QUEIROZ, M.I.P.,
Désorganization de petites communes brésiliennes Cahiers Intenationaux de
Sociologie, Paris, v.28, p. 159-173 Janvier/Juin 1960
3 DURKHEIM, E. A divisão do trabalho social. Lisboa/São Paulo:
Presença/Martins Fontes, 1977.
Data de Publicação: 26/05/2004
Autor(es): Nilce da Penha Migueles Panzutti (panzutti@iea.sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor