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A Cofins e a natimorta utopia possível
No
conjunto de reformas que o governo federal elegeu como prioritárias para o
primeiro ano de mandato, incluiu-se a tributária que, talvez, seja a de maior
complexidade do ponto de vista da estabilidade do pacto federativo. Tal reforma
esteve também presente na agenda do governo anterior, mas tanto a composição
quanto a estrutura de poder montada impediram que as mudanças naquela ocasião
propugnadas tivessem célere andamento.
De qualquer modo, no atual governo a retomada do assunto conduziu à tentativa de
simplificação da estrutura tributária, com ênfase na redução da cumulatividade
dos impostos e taxas (vulgarmente denominada de impostos em cascata). Como
resultado desse esforço, o governo federal estabeleceu que, a partir de 2004, a
nova alíquota da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (COFINS),
de 7,6%, seja cobrada somente sobre a última transação observada.
Todo o consumo intermediário de suprimentos e serviços foi desonerado e o último
elo das cadeias de valor responderá pelo recolhimento da Cofins devida,
excetuando-se os bancos que permanecerão com alíquota de 4% (mais uma medida pró
sistema financeiro dessa equipe de governo). Estimativas feitas por
tributaristas apontam que a nova alíquota deve gerar arrecadação de cerca de R$
8 bilhões em 2004.
Sob essa nova situação, segmentos, notadamente o de prestação de serviços, foram
particularmente penalizados, iniciando-se, inclusive, mobilização da sociedade
civil para que o governo federal estabeleça algum tipo de tratamento
diferenciado para eles. Todavia, os impactos imediatos da elevação da alíquota
atingem também outros setores, que, porém, ainda não despertaram suficientemente
a atenção dos veículos de informação e da população em geral, como é o caso da
indústria da alimentação.
Para aclarar a situação, pode-se realizar um exercício didático tomando como
exemplo a indústria de abate e processamento de aves (frango), que é sabidamente
um dos segmentos mais competitivos no campo da indústria de alimentos. Uma
indústria, ao realizar suas vendas para o varejista, estará isenta da nova
Cofins. Entretanto, o varejo terá que adicionar 7,6% de alíquota sobre o
produto. Para ambos os agentes (indústria e varejista), as margens líquidas
internalizadas são sumamente baixas, excepcionalmente ultrapassando os 5% para
cada um.
Diante de despropositado e ardiloso achaque, em comparação com as margens
apropriadas, são esperados dois movimentos microeconômicos: diminuição das
referidas margens (varejista e industrial) e aumento dos preços ao consumidor,
com substanciais reflexos no custo de vida e, conseqüentemente, na condição de
acesso aos alimentos por parte da população de menor poder de compra.
Outra cadeia produtiva profundamente prejudicada com essa mudança é o segmento
do trigo. Por se tratar de produto em que as importações respondem por parcela
substancial do abastecimento nacional, a nova Cofins traduz-se efetivamente num
imposto de importação. O preço final dos produtos derivados da farinha de trigo
(pão, macarrão e biscoitos) certamente aumentará. Prevendo a possibilidade de
encolhimento de seu mercado, os interlocutores do agronegócio do trigo
mobilizaram-se com vistas a solicitar junto ao governo um tratamento
diferenciado.
Ao ressuscitar, mesmo que indiretamente, um imposto de importação, o governo
federal caminha na contramão dos protocolos internacionais e de acordos
orientados pela facilitação do comércio exterior com maior inserção brasileira
nas transações internacionais. Com isso, o chamado custo Brasil se amplia,
dificultando ainda mais o necessário empreendedorismo que oxigena o mercado,
recruta força de trabalho e gera renda e impostos.
Tal majoração tarifária joga por terra todo o esforço empreendido pelo governo
de São Paulo, notadamente no primeiro mandado do governador Mário Covas, no
sentido de desonerar e conceder diferimento do ICMS aos itens da cesta básica,
derrubando dos anteriores 17% para atuais 7% a maior parte dos itens de maior
consumo. Em realidade, opera-se, nesse contexto, um repasse do potencial de
arrecadação do governo do Estado para a órbita federal, tornando também o
tesouro paulista um dos prejudicados pelo insidioso procedimento do governo
federal. Lamentavelmente, seremos todos punidos por um tremendo retrocesso em
termos de modernização e de dinamização dos negócios privados, que são, em
última instância, o que gera incremento de arrecadação (esse sim é o bom
imposto).
Como se não bastassem todos os argumentos arrolados até aqui, o próprio governo
federal complica-se diante de seu programa mais emblemático: o Fome Zero
(atualmente encampado pelo Bolsa Família). Paradoxalmente, por um lado,
pretende-se atender cerca de 3,5 milhões de famílias pelos mais diversos meios
(desde a consignação de valores em cartões magnéticos para utilização em
supermercados até a distribuição direta de cestas básicas a milhões de famílias
em situação de penúria) e, por outro lado, impor maiores ônus tributários sobre
os alimentos e bebidas (também o leite das crianças terá Cofins de 7,6% !),
reduzindo o já cadente mercado consumidor e contribuindo para o aumento do nível
de desemprego e da recessão no País.
Embora ser governo implique carregar intrinsecamente ônus políticos a serem
custeados, essa majoração da Cofins poderá respingar no próximo pleito
(municipal), com efeitos nocivos inclusive no já em andamento esforço de
reeleição do atual presidente.
Por meio da ação de seus grupos de pressão e lobbies, os segmentos do
agronegócio devem questionar essa malfadada Cofins. Também as entidades de
classe precisam ser envolvidas nessa mobilização. As possibilidades de reversão
são mínimas, porém a resignação deve custar muito - no estrito senso mesmo.
Data de Publicação: 18/12/2003
Autor(es): Celso Luís Rodrigues Vegro (celvegro@sp.gov.br) Consulte outros textos deste autor